Veja alguns pontos do resumo
O sonho.
DEZ DE NOVEMBRO de 1619. Trancado sozinho em um quatro aquecido, que ele chama de "estufa", sentindo a chegada do inverno alemão, um homem vive intensa excitação intelectual. "Fatigou-se de tal maneira", conta Adrien Baillet, seu primeiro biógrafo, "que seu cérebro se incendiou, entregando-se a uma espécie de frenesi". Deita-se e tem três sonhos em sequência, nos quais, ao acordar, reconhece uma missão. Implora a Deus e à Virgem que o mantenham no reto caminho para realizar a descoberta que havia antevisto.
O homem é René Descartes, então com 23 anos. Recebe em sonhos a missão de bem conduzir sua razão, e o que pede aos céus é confiança em si mesmo.
A dúvida
Para não correr o risco de se enganar, Descartes decide considerar falso o que é só verossímil. Começa, pois, por submeter tudo à dúvida: "Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Fixo-me bem que nada existiu de tudo o que minha memória me representa. Penso não ter nenhum órgão de sentidos. Creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são invenções do meu espírito. Então, o que posso considerar verdadeiro?"
O cogito
"Embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. Observando que essa verdade, 'penso, logo sou', era tão firme e sólida que nenhuma das mais extravagantes hipóteses dos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que podia aceitá-la como o princípio primeiro da filosofia que procurava".
Deus
Esse eu que existe é um ser finito, imperfeito e, acima de tudo, contingente, como contingente é tudo o que o cerca: eu existo porque meus pais existiram e se conheceram, essa mesa de madeira existe porque existiu uma árvore, que por sua vez nasceu de uma semente, e assim por diante.
Nossa mente só encontra repouso quando propõe a existência de um ser de outro tipo: infinito, perfeito e necessário. Existe esse ser? Sim, por definição, pois a existência é um atributo da perfeição: um ser perfeito inexistente é uma contradição em termos. É o argumento ontológico de santo Anselmo.
Deus, as leis da criação e a razão descobridora por meio do método
Poderia a razão assumir tão elevado papel? O pensamento tradicional, ancorado na revelação, era seguro de si. Faltava demonstrar que um novo pensamento sistemático poderia encontrar um caminho próprio para descobrir a verdade, construindo uma consistente teia de conceitos, com princípios e normas universais que não fossem mera opinião. Imensa tarefa.
O simples acúmulo de evidências empíricas jamais poderia estruturar um conhecimento alternativo e firme. Quem poderia fazê-lo era o método. Haveria de trabalhar com ideias claras e distintas, articuladas segundo regras igualmente claras de análise e de síntese, "graças às quais todos quanto as observem jamais possam supor verdadeiro o que é falso e cheguem ao conhecimento sem se fatigar com esforços inúteis".
A matemática mostrava o caminho: "As longas cadeias de raciocínios simples e fáceis, que os geômetras usam para chegar às suas demonstrações mais difíceis, me fazem supor que todas as coisas que caem no escopo do conhecimento humano interligam-se da mesma maneira." Deve ser possível construir uma ciência pura das relações e das proporções que independa das peculiaridades de cada objeto. É a "mathesis universalis", Na busca da verdade, os antigos colocavam em pé de igualdade a demonstração analítica, fundada na lógica formal, e a argumentação dialética, que se move no campo do que é meramente provável e extrai conclusões verossímeis, tentando persuadir. Descartes rompe essa longa tradição. Tudo é analítica.
As críticas
Gaston Bachelard sugere que não há métodos perenes, pois todos envelhecem: "Chega sempre a hora em que o espírito científico só pode progredir se criar métodos novos" ("O Novo Espírito Científico", Tempo Brasileiro, 2000). Paul Feyrabend radicaliza essa ideia e propõe uma espécie de anarquismo metodológico: "O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale" ("Contra o Método", Editora Unesp, 2007).
Karl Popper também se afasta da abordagem cartesiana. Para ele, a procura de um método é um problema sem solução, pois, quando buscamos um critério para distinguir o que é certo e o que não é, somos remetidos à questão de saber se esse critério é certo ou não, e assim indefinidamente.
Todas as teorias são conjecturas. O que diferencia as teorias científicas das demais é tão-somente que as primeiras são formuladas de maneiras que as deixam expostas à refutação.
Contra o programa de Descartes, Popper afirma que o conhecimento científico não acumula um estoque crescente de verdades irrefutáveis, pois vive imerso na dialética de conjecturas e refutações. As teorias válidas, em cada momento, são as que ainda não foram refutadas. Teorias incertas, ideias injustificadas e antecipações ousadas são essenciais ao progresso da ciência, pois desempenham o papel de programas de pesquisa. Sem elas, não há mutações.
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