As tragédias das chuvas na virada de ano podem ser atribuídas ao acaso e ao descaso. Ao acaso, pois São Pedro se esqueceu de fechar as torneiras do céu nesses últimos tempos. Chovia num dia o que seria para chover o mês inteiro ou quase. Por mais previdentes que fossem os governos e os moradores das encostas de morros e beiradas de rio, era provável que tivessem sido surpreendidos pelo dilúvio.
Entretanto, o descaso das autoridades de governo foi o principal responsável por tudo que aconteceu. O drama poderia ser bem menor. Costumamos, no curso de episódios assim, dizer que não cabe achar culpados, mas resolver o problema emergencial. É um discurso cômodo para fugir à cobrança da opinião pública. Esta, coitada, até já se acostumou a temperar sua insatisfação e contenta-se com o apagamento de incêndios e, quando sobra algo após a desgraça, ainda comemora. O céu, que mandou tanta água, que acolha os mortos; pobres mesmo dos que ficam acima dos escombros de suas moradas, à deriva da sorte ou de novas chuvas.
A falha foi coletiva. Da população que ocupou os morros, por estado de necessidade ou não, desafiando a gravidade e os destemperos da natureza. E, de modo muito mais agravado e, em certo sentido, exclusivo, dos poderes públicos. O planejamento urbanístico e contra calamidades é pilhéria por aqui, em que pese toda atenção que o texto constitucional devotou a ele.
Falhou a União a quem constitucionalmente compete, por exemplo, elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, e instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação e saneamento básico.
Falharam os três entes federativos, União, Estados e Municípios, pois a todos eles, concorrentemente, é atribuída a tarefa de promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico e de combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Falharam os Estados a quem cabe o planejamento e a organização territorial, o desenvolvimento urbanístico, econômico e social dentro de suas fronteiras ou divisas, respeitadas as diretrizes federais. Falharam os Municípios a quem compete a política urbana que deve ter sempre por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, não as burras dos locatários do poder.
Por questões eleitoreiras, por falta de recursos ou de vontade política, muita gente morreu com a chuva e inundações. Quantas mais precisarão morrer para que a Constituição seja respeitada? Nem de Constituição se trata o assunto, mas de algo que inspira e justifica a existência de governo desde que o mundo é mundo: o bem comum.
Doi saber que o bem comum não é, assim, geral, de todos. É bem de poucos. Em Angra, por exemplo, na mesma hora em que a terra no Morro da Carioca e na Enseada do Bananal desabava em direção ao mar e soterrava casas e pessoas, afogando mais que sonhos, vidas, a seleta festa da virada “Branco & Amarelo”, na Ilha do Arroz, com receptivo exigente, cardápio variado, lounge generoso e DJs internacionais e nacionais, além da sempre Preta Gil, recebia mais de 1.300 convidados que reclamavam da água a molhar seus sapatos, penteados, calças, blusas, vestidos. Tinham culpa? Em absoluto. Cada um com suas oportunidades, cada um com suas mazelas.
A simultaneidade é que é injusta. O descaso mais ainda. O acaso é que é sempre imprevisível.