quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Acaso e descaso fatais

As tragédias das chuvas na virada de ano podem ser atribuídas ao acaso e ao descaso. Ao acaso, pois São Pedro se esqueceu de fechar as torneiras do céu nesses últimos tempos. Chovia num dia o que seria para chover o mês inteiro ou quase. Por mais previdentes que fossem os governos e os moradores das encostas de morros e beiradas de rio, era provável que tivessem sido surpreendidos pelo dilúvio.
Entretanto, o descaso das autoridades de governo foi o principal responsável por tudo que aconteceu. O drama poderia ser bem menor. Costumamos, no curso de episódios assim, dizer que não cabe achar culpados, mas resolver o problema emergencial. É um discurso cômodo para fugir à cobrança da opinião pública. Esta, coitada, até já se acostumou a temperar sua insatisfação e contenta-se com o apagamento de incêndios e, quando sobra algo após a desgraça, ainda comemora. O céu, que mandou tanta água, que acolha os mortos; pobres mesmo dos que ficam acima dos escombros de suas moradas, à deriva da sorte ou de novas chuvas.
A falha foi coletiva. Da população que ocupou os morros, por estado de necessidade ou não, desafiando a gravidade e os destemperos da natureza. E, de modo muito mais agravado e, em certo sentido, exclusivo, dos poderes públicos. O planejamento urbanístico e contra calamidades é pilhéria por aqui, em que pese toda atenção que o texto constitucional devotou a ele.
Falhou a União a quem constitucionalmente compete, por exemplo, elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, e instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação e saneamento básico.
Falharam os três entes federativos, União, Estados e Municípios, pois a todos eles, concorrentemente, é atribuída a tarefa de promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico e de combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Falharam os Estados a quem cabe o planejamento e a organização territorial, o desenvolvimento urbanístico, econômico e social dentro de suas fronteiras ou divisas, respeitadas as diretrizes federais. Falharam os Municípios a quem compete a política urbana que deve ter sempre por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, não as burras dos locatários do poder.
Por questões eleitoreiras, por falta de recursos ou de vontade política, muita gente morreu com a chuva e inundações. Quantas mais precisarão morrer para que a Constituição seja respeitada? Nem de Constituição se trata o assunto, mas de algo que inspira e justifica a existência de governo desde que o mundo é mundo: o bem comum.
Doi saber que o bem comum não é, assim, geral, de todos. É bem de poucos. Em Angra, por exemplo, na mesma hora em que a terra no Morro da Carioca e na Enseada do Bananal desabava em direção ao mar e soterrava casas e pessoas, afogando mais que sonhos, vidas, a seleta festa da virada “Branco & Amarelo”, na Ilha do Arroz, com receptivo exigente, cardápio variado, lounge generoso e DJs internacionais e nacionais, além da sempre Preta Gil, recebia mais de 1.300 convidados que reclamavam da água a molhar seus sapatos, penteados, calças, blusas, vestidos. Tinham culpa? Em absoluto. Cada um com suas oportunidades, cada um com suas mazelas.
A simultaneidade é que é injusta. O descaso mais ainda. O acaso é que é sempre imprevisível.

Coincidências (A “Quadrilha” da realidade)

Lia era casada com Paulo Pereira Crispim que tinha uma amante ou duas. Lia se desesperou, bebeu além do costume de uma taça e saiu em disparada de choro na Expressa atingindo de morte Antônio de Lins que atravessava a avenida para se casar com Berenice de Jesus.
Do altar, Jesus foi levada para o pronto-socorro em transe ou choque e foi atendida por Rodolfo Nazareno em tempos de depressão com a desfeita da quase noiva e bela Fazia Ayana que, insatisfeita com as incertezas do amor e da fortuna, encontrava-se há tempo com o ex-seminarista e velha paixão Rubens Crespo.
Rubens não havia tratado de seu eterno problema de ejaculação precoce, mas tinha forças para um relacionamento tumultuado e equilíbrio para defender Lia da acusação de homicídio. Fazia ainda conhecerá Lia e poderá deixar Nazareno e Crespo no álbum da memória remota.
Pobre Rubens jamais resolverá sua moléstia, se bem descobrirá subterfúgios, línguas, solilóquios. Sortudo e soturno Rodolfo, como é de seu estilo, se casará com a japonesa Asuka em Pequim, e descobrirá um novo mundo que, no Oriente, se chama, em nome próprio, Azumi Manamiazu, sem notícia, contudo, sobre o seu aprendizado naquelas artes distantes e meio ocultas.
De Berê, pouco se sabe, além do salão-de-beleza, onde trabalhava e, de repente, não mais apareceu, duvida-se se por amor, partida ou profissão. Paulo. Crispim continua com as amantes que têm amantes, relações anônimas e emocionantes próprias dos esconderijos prazerosos, mas eternamente incompletas.
As histórias sem rimas são ovais como o mundo e todo mundo. São verdadeiras e sem retoques, não fosse pela troca dos nomes para evitar problemas de relacionamentos e processos. O clichê não é meu nem de Drummond, perdão ao poeta, mas da vida.

A partida e o recomeço

Muere lentamente, quien pasa los días quejándose de su mala suerte o de la lluvia incesante. (...) Evitemos la muerte en suaves cuotas, recordando siempre que estar vivo exige un esfuerzo mucho mayor que el simple hecho de respirar. Solamente la ardiente paciencia hará que conquistemos una espléndida felicidad. (Pablo Neruda).
Todo ano é assim. De repente ele se vai, some madrugada adentro e dele só restam as lembranças, fotografias, filmes, tudo em flashback. Vai para não voltar nunca mais. Vira um registro, uma referência; para alguns, uma reticência; para outros uma exclamação; para todos, um ponto final. Seu adeus é tão irreversível como morrer. E, de certa maneira, é um retrato da morte, um aviso de que também partiremos e nos converteremos nessa matéria confusa e ambígua da lembrança.
A partida é uma espécie de antinarciso, porque nos damos conta de que não somos o que imaginamos ser. O espelho do rio nos mostra um rosto já diferente, mais envelhecido e menos convidativo pelas marcas de alguns sonhos extraviados e de amores perdidos, alguns até impossíveis ou sequer conhecidos, experimentados. A partida é um túnel para a luz, se luz houver, de uma despedida inevitável de nós mesmos.
Os humores da economia podem nos afetar; os destemperos da política podem nos incomodar; as narrativas do que sucedeu podem nos comover, mas nada se compara à angústia do vazio que nos deixa essa partida. Dirão que esse sentimento é fruto da perda de sentido de que somos mais que matéria ou da estetização da vida, da vida feito mercadoria, mas será que os que me dizem as verdades também não sentem lá no fundo que a partida é um golpe, vá que seja pequeno, mas um golpe na pretensão recôndita de eternidade?
Certo é que todo ano ele parte e nos deixa essa sensação de incompletude, nos lembrando que somos pó, poeira, ilusão. Ainda assim comemoramos menos por essas lembranças, mais por que outro chegará com seus cordões de esperanças de que haverá espaço para novos sonhos, novos desejos, outros recomeços. Brindamos o amor e a vida, outra vez, eternizada ainda que seja nos instantes de cada hora que nos fazem lembrar de que vivemos e isso é que importa, vivemos a graça de viver. Então sorrimos, apagando toda amargura e aquele hálito azedo da despedida. Somos nós, mas somos, de novo, diferentes, um narciso remoçado, avançando num túnel iluminado que se inicia a cada réveillon.
Não há razão para tristeza, pelos menos agora. Nem para a dor, pelo menos agora, Há motivos para festejar, independente da economia, da política ou do que passou. O tempo tira, mas, de certo modo, nos devolve. E continuaremos assim até a invisibilidade ou ao próximo dezembro. O interessante de tudo é que todo desespero e toda felicidade nascem de um pequeno e convencional gesto: mudar a página do calendário.
Feliz 2010 para todos!