Ouro Preto, 21 de setembro de um ano qualquer. Estou a um passo do precipício, sob essa neblina que não deixa o sol revelar os contornos do paredão de pedras nem os imponentes campanários das igrejas à distância de meia légua. Ainda assim escuto o badalar dos sinos entre uma e outra prece das beatas como sucede em todo alvorecer. A cena de tão vista nesses anos todos acabou impregnando meus olhos e ouvidos como fosse parte deles, imagem guardada na memória da alma (o que pode significar mais, a eternidade, talvez) ou das células (o que pode significar menos, a transmissão aos vermes que me espreitam lá de baixo). Pois um deslize, um passo adiante e estarei a mil metros de pedaços de carne, osso e sangue tingindo o verde da mata semivirgem e o escorrer intrépido do Rio da Ponte. Um passo que me falta para recuperar a dimensão do invisível e transmudar o tempo. Voltarei ao mundo das possibilidades imateriais da existência, deixando o terreno árido das probabilidades de ser um amontoado de carbono pensante e deprimido.
Devo dizer que já fui, em outros tempos, poderoso e feliz; rei persa, bajulado pelas cortesãs e adorado pelos reinos e senhores de meu tempo; comandante fenício que assaltou e colonizou a Sicília; imperador chinês da dinastia Han, por pouco, não tendo conquistado todo o limite do oceano Hircaniano; senador romano da estirpe dos césares, que, somente pela insidiosa conspiração de Marco Bruto, a quem lealmente ajudei a destruir Caio Júlio, não me tornei um; papa, sim, fui, a enfrentar as intempéries e os destemperos de monarcas infiéis ou simplesmente incompetentes; Grão-mestre dos Templários, tendo sob minha espada subjugado mais de duas centenas de chefes islâmicos, e, de menor importância, fui ainda reitor da universidade de Bologna.
Nem tão poderosa assim, mas talvez a mais saudosa de minhas vidas tenha sido mesmo a que vivi nos esconderijos amorosos de Catarina Romola, uma jovem da linhagem dos Médici, que aprendera muito bem em Florença as artes da mesa, mas nada, absolutamente nada, as artes da cama. Ninguém conta, a história omite, mas Catarina não tinha gosto pelo amor, nem recebeu de Henrique (com quem, sob encomendas da política, casou-se) os cuidados e paciência para aprender a gostar dos prazeres mais carnais que as travessas cheias de caças, massas e profiteroles.
Henrique, rei feito, preferia Diana, sua profana e verdadeira mulher, no sentido próprio das conjunções carnais (assim mesmo no plural, como ela aos meus olhos e desejo por mais de uma vez demonstrou ser mestre e doutora), que a mim recorreu numa tarde quente e seca de verão, diante dos boatos na corte de que era necessário um herdeiro para o trono e, claro, de novas núpcias para o rei que, venhamos e convenhamos, Diana que me perdoe onde estiver, era mal acabado e tinha um hálito de porco selvagem. Não queria uma terceira e, poderia ser, uma fatal concorrente. Pois foi pelas mãos de Diana (e de outras promessas segredosas) que fui levado aos encontros com Catarina. Insípida no começo, fez-se toda charme e volúpia, depois que usei de algumas peraltices e estratagemas de amante, que só a vida nos bordéis da França ensina. Não era de toda feia ou deselegante como dizem até hoje os desavisados ou me dizia a ciumenta Diana. Tinha uns lábios firmes e pronunciados como quisessem saltar da própria boca ou enfiar-se nos desejos alheios com ardor, além de um nariz e testa que sobressaíam às maçãs (quase) esguias da face, sobretudo nos instantes em que tremia de prazer.
Assim foi que, creio eu, embora ela não nunca me tenha confirmado, certamente por conveniência e discrição, fizemos dois herdeiros ao trono francês no crédito do fanfarrão Henrique. Assim foi que chorou, mesmo depois de não nos encontrarmos mais havia quinze anos, quando soube que tinham me confundido com um protestante e me cravado um punhal bem no cruzado entre a jugular e a glote. Creio sim que chorou e ainda mais se enlutou desde então até morrer de tristeza alguns anos depois. Como adorei aquela mulher, feia que fosse (e não era, repito), seus defeitos, seu gênio, suas manias e, principalmente, a forma tenra com que acolhia meu amor plebeu. Entendo por que me proibiu de vê-la quando se fez rainha, entendo suas razões de ter preferido os filhos e a França a mim, simples amante nascido e criado nos esgotos fedorentos de Paris. Quem ama perdoa por trair e por trair-se. O amor puro e imenso não conhece a vontade de domínio, de apropriação ou exclusividade. Às vezes, afastar ou afastar-se é a melhor forma (não a mais prazerosa, todavia) de amar. Por isso, entendi aquele adeus. Talvez a amasse mais do que ela a mim. Importa que amamos, que amei.
Depois desse tempo de devoção profunda, não mais voltei a esse plano de carbonos, limites, tempo e probabilidades, senão agora como residente de um lugar distante, sem posses, sem poder, sem amor, quem sabe sem alma, apenas um corpo à disposição do destino. Talvez uma prova, talvez o epitáfio. Então me resolvi pôr na altura quase do Itacolomy e, em meio à beleza de sempre-vivas e dessas paisagens exóticas para o meu gosto refinado pelo tempo, lançar-me às planuras aladas dos sonhos e retornar aos fantasmas que escrevem minha história desde a Pérsia à França. Voltar ao que sou como essência, ar e poesia. Nada mais. Sequer aspiraria, não agora, à Catarina.
Post-scriptum: Se alguém estiver a ler essa mensagem, terei renascido. Ou quem sabe nunca terei vivido (além da mistura em que me supunha transformar).
Um comentário:
Importa que amamos...
Que neblina!
Um abraço.
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