Já discuti algumas vezes se o esporte não é uma espécie de cultura da violência. A tese mais corrente é de que é um substitutivo dela. O artigo de João Pereira Coutinho, publicado na FSP de 6/7/2010, segue essa linha.
No texto, ele rebate os argumentos de Theodore Dalrymple, pseudônimo do médico e ensaísta britânico Anthony Daniels, apresentados em "Of Snobbery and Soccer" (New English Review, july/2010), de que a paixão mundial pelo futebol é sintoma da decadência intelectual de nosso tempo.
Como podem os parlamentares franceses instalar uma comissão parlamentar de inquérito só para analisar as causas do fracasso dos Bleus na Copa do Mundo de 2010? Um desperdício de inteligência.
Coutinho contra-ataca: o jogo de futebol tem importância tanto política quanto existencial para os indivíduos e povos. Lembra da derrota de Portugal para a Espanha pelas quartas-de-final. Uma tragédia sublimada até certo ponto. "Perder contra Espanha desperta todos os fantasmas históricos de um país que, em rigor, sempre afirmou a sua identidade por oposição a Castela. E que sempre viu em Castela uma ameaça física (no passado) ou econômica (no presente)."
A partida tinha o sentido simbólico de revanches: "Para os portugueses, defrontar a Espanha era uma nova Batalha de Aljubarrota. Serem derrotados pela Espanha, uma repetição de 1580. (...). Todos os portugueses espera[va]m pela desforra. Espera[va]m por um novo jogo, uma nova Restauração, um novo 1640".
A Copa do Mundo, reduzida à Eurocopa, desfaz, ainda que por 90 minutos, o que a União Europeia tentou sepultar: as rivalidades. "O futebol é a válvula de escape para que os países, formalmente unidos em Bruxelas, possam libertar medos ou ressentimentos que o tempo armazenou no subconsciente histórico".
O lado existencial dos confrontos é revelado pela transferência infantilizada dos projetos megalomaníacos individuais para uma armadao (supostamente indestrutível) de chuteiras. O torcedor anônimo, um Zé, outra Maria, projeta na seleção exigências pessoais que não podem ser desfeitas. "Ele anseia por ordem, força, criatividade, disciplina, vontade ganhadora; ele exige o que seria incapaz de exigir a si próprio. Porque não pode, ou não quer".
A resposta tribal, baseada em estratagemas supersticiosos e rituais compulsivos, é a afloração irracional da sordidez humana e de seu complexo de inferioridade reprimido. Coutinho prefere ver nela a substituição dos instintos de violência por uma guerra sublimada: "No Ocidente global e pós-moderno, onde a religião e mesmo o Estado-nação foram recuando na sua força vital, o futebol preencheu esse vazio, congregando novos fiéis com um novo sentimento de pertença".
Futebol não é só um jogo nem é só um processo de formação da identidade, contudo. É também o culto da estética e da violência. Por isso se apela tanto para um arquétipo de um futebol-arte perdido. Perde-se o jogo, mas não a graça. Mas o desejo do pódio é mais forte. Ganhe-se com Dunga, mas não se perca jamais. Caso contrário...
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