Série de reportagens que revelam o problema do diálogo de culturas, situado no Brasil, especialmente em vista da tradição de algumas etnias indígenas condenarem à morte bebês que nascem com deficiência física, gêmeos ou de mães solteiras. Problema complexo. Não se deixe levar pela primeira impressão.
Jornal Cidade de 20/4/2009
Morte da indiazinha Tititu exemplifica a incompetência dos órgãos federais, que chegam a ser empecilho no salvamento de crianças indígenas.
Por questão de sobrevivência do grupo, na cultura de muitas tribos indígenas da Amazônia Legal não há espaço para os fracos. Por mais que doa aos pais, a tradição manda que as crianças que nasçam com alguma deficiência devam ser sacrificadas. O método utilizado é geralmente o sufocamento ou soterramento. Incontáveis bebês já foram estrangulados, sufocados com folhas, afogados ou enterrados vivos porque seus parentes decidiram que eles seriam uma ameaça para a existência da tribo.
Deficiências físicas não são os únicos motivos para o infanticídio. Filhos de paternidade questionável ou gêmeos – que, segundo as crenças, trazem azar para a aldeia – são vítimas em potencial. Por mais bárbaro que seja, esses costumes estão arraigados nas tribos.
Há anos, a organização não governamental Atini trabalha no sentido de proteger crianças indígenas do infanticídio e conscientizar as gerações mais jovens a dizer não aos assassinatos. Por mais árduo que seja, o trabalho da ONG vem colhendo vitórias e reconhecimento, principalmente no exterior. O pior adversário, porém, não são os indígenas e sim a burocracia federal, em especial a FUNAI e a Funasa.
“Como todo órgão público, que cargos de direção são por indicação política, tem os seus problemas. Cada gestor tem uma ideologia diferente e dificilmente você consegue levar adiante projetos mais a longo prazo. A distância do trabalho de campo e os gabinetes onde se tomam as decisões é muito grande, além do excesso de burocracia. Todas estas coisas dificultam muito o trabalho. Você pode encontrar bons profissionais com muito boa vontade, mas dentro da máquina administrativa acabam se perdendo”, comenta Edson Suzuki, diretor-executivo da Unicamp, mestre em lingüística, que atua há cerca de 20 anos junto ao povo indígena suruwahá no Amazonas, desenvolvendo pesquisa linguística e atuando nas áreas de etno-educação e saúde.
Profundo conhecedor da cultura e da língua indígena, tem apoiado membros dessa etnia em sua luta pela vida de crianças com deficiências físicas ou mentais. O trabalho de Suzuki tem se tornado internacionalmente conhecido e ele tem denunciado o problema do infanticídio na Inglaterra, na Holanda e na Noruega.
Um triste caso na tribo Suruwahá é da menina Tititu, que se tornou nacionalmente conhecida quando seu pai Naru fez um apelo emocionante à Nação Brasileira, no programa Fantástico da Rede Globo, em 2005. Sua filha sofria de uma doença hormonal que causava, entre outros problemas, uma deformidade no órgão genital. Ela precisava de uma cirurgia corretora para não ter que ser sacrificada na aldeia, como reza a tradição cultural.
Naru teve que lutar muito contra o relativismo cultural reinante nos meios indigenistas para conseguir uma autorização da Funasa para que sua filha passasse por uma cirurgia reparadora do órgão genital. Ele estava desesperado, pois sabia que sem a cirurgia, sua filha teria que ser sacrificada. Mas ele estava decidido a não fazer isso porque a amava. Chegou a dizer que se tivesse que matá-la, ele se suicidaria em seguida, de tanta tristeza. Finalmente, depois de meses de insistência, Naru conseguiu a autorização para a cirurgia.
Naru tinha plena consciência de que a doença de sua filha exigiria cuidados pelo resto da vida, mas ele e sua esposa aprenderam a administrar os medicamentos e voltaram satisfeitos para a aldeia. Tititu foi aceita com alegria pela comunidade e estava crescendo feliz entre seus parentes. Regularmente eles eram levados pela Funasa até Manaus onde Tititu fazia os exames de sangue necessários para controlar a dosagem do medicamento.
A notícia da morte súbita de Tititu surpreendeu a todos. Segundo relato do enfermeiro do DSEI local, Tititu morreu de desidratação. Sabendo que a falta do medicamento prescrito causa desidratação súbita e leva a óbito, o IACIB exige que a Funasa e a FUNAI prestem esclarecimentos e expliquem o que de fato aconteceu com a menina Tititu Suruwaha.
“A Funasa apresentou um relatório dos procedimentos de atendimento. Até o momento não houve nenhuma ação. O doutor Davi Terena que é um advogado indígena, denunciou o caso de Tititu no Ministério Público, pedindo uma investigação. Terena está planejando uma viagem para a área suruwaha, juntamente com outro indígena, Eli Tikuna, representante da organização dos caciques tikunas de Brasília. Eles querem ouvir diretamente dos suruwahas o que aconteceu”, conta Suzuki.
ONG pressiona aprovação de lei contra infanticídio
Um dos principais objetivos da ONG Atini, sediada em Brasília, é que a Lei Muwaji seja apreciada e aprovada pelo Congresso Nacional. O nome do projeto de lei, que condena o infanticídio e os maus-tratos de crianças indígenas, é uma homenagem a Muwaji Suruwahá, que lutou bravamente para defender a sobrevivência de sua filha, que nasceu com paralisia cerebral.
Edson Suzuki, diretor-executivo da Atini, conta que atualmente a Lei Muwaji está sob responsabilidade da deputada federal Janete Pietta (PT-SP), mas ainda não está tramitando na Comissão dos Diretos Humanos da Câmara Federal.
A meta é que o triste destino de milhares de crianças, como Tititu Suruwahá e Poliana Yanomami, não se repita. A luta pela vida de Poliana criança não tem sido fácil, desde as primeiras horas de vida. Foi rejeitada por sua mãe logo depois do parto, pois ela já não estava mais vivendo com o pai.
Ao invés de matar a criança, a mãe a entregou a uma tia, que imediatamente a levou até o mato e começou a sufocá-la com folhas, como é costume do povo. Antes que morresse, uma outra tia a resgatou e a entregou a uma missionária, que trabalhava junto aos Yanomami.
Poliana foi ainda vítima de maus-tratos e teve que ser retirada da aldeia num voo de emergência, depois de ser tão espancada pela tia que acabou perdendo os movimentos do lado esquerdo do corpo. Atualmente, a indiazinha está internada numa UTI, em São Paulo, com infecção generalizada.
Além das crianças indesejadas, é comum que os idosos sejam “descartados” nas tribos amazônicas. “Infelizmente, não conhecemos alguém que trabalhe nesse aspecto. Acho que fomos os pioneiros em começar a falar em direitos individuais para os povos indígenas. Até então se tem lutado e conseguido muito avanço apenas no direito coletivo. Muitos optam por garantir o direito coletivo de se manter uma tradição e não dar ouvidos ao direito de uma mãe que não quer sacrificar seu filho”, conclui Suzuki.
(Rodrigo Salles)
Folha de 7/8/2011
Sob pressão do governo, a Câmara esvaziou um projeto de lei que previa levar ao banco dos réus agentes de saúde e da Funai (Fundação Nacional do Índio) considerados "omissos" em casos de infanticídio em aldeias, informa reportagem de Bernardo Mello Franco publicada na Folha deste domingo (a íntegra está disponível para assinantes do jornal e do UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha).
A prática de enterrar crianças vivas, ou abandoná-las na floresta, persistiria até hoje em cerca de 20 etnias brasileiras. Os bebês são escolhidos para morrer por diversos motivos, desde nascer com deficiência física a ser gêmeo ou filho de mãe solteira.
A Funai se nega a comentar o assunto. Nos bastidores, operou para enfraquecer o texto com o argumento de que ele criaria uma interferência indevida e reforçaria o preconceito contra os índios.
Do outro lado da discussão, ONGs e deputados evangélicos acusam o governo de cruzar os braços diante da morte de crianças e defendem que o Estado seja obrigado por lei a protegê-las.
Alguns textos acadêmicos sobre o assunto
A Tutela do Estado frente aos Conflitos Culturais (Daniel Gonçalves)
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