sexta-feira, 5 de agosto de 2011

I Amy Winehouse (& Voldemort)

Amy e Voldemort se foram com boa parte do que não presta em nós. E boa parte do que nos mantém a salvo. Um cálculo relativamente simples e milenar. Como não podemos com o nosso fardo e as nossas culpas, nem com a crueza do real, precisamos oferecer alguém ao sacrifício para abrandar a fúria dos deuses que, embora não saibamos, somos nós mesmos. Uma autorreferência narcísica e existencial. Escolhemos, em geral, as escórias de cada geração, embora com estatuto distinto, porque, como deuses, precisamos e gostamos de classificar. Cada coisa a seu uso, cada coisa em seu lugar. Uma escolha com a razão da desrazão, a consciência do inconsciente, todavia, escolha de etiqueta e conveniência.
Há uma classe de escórias que são a encarnação de Mefistófeles a exemplo do Você-Sabe-Quem. Os Voldemorts não têm direito a um lampejo de humanidade. São maus do mal, corpo e alma. Bem distintos de nós, que somos todos do bem, honrados cem por cento o tempo todo; e guerreiros, mesmo sem espada ou granadas, mesmo só de palavras e intenções, contra a legião desses malfeitores, inventados por nosso desejo de punição. Eles parecem ser mais resistentes e poderosos que nós, vencendo-nos, durante quase toda vida, em batalhas miúdas, diárias. Quando nos sentimos fracos, aí é que eles aparecem mais fortes e indestrutíveis, nos jogando na cara o destino: medíocre repertório de horas passadas a servir aos seus deleites. Quando se vão, por ato inexplicável de valentia ou por vontade de um deus-diretor, não nos contemos de exultação, algo que nasce nos lugares mais escondidos de nossa essência como fôssemos uma só legião de vitoriosos.
Danadas são outras espécies de vilões, que se envolvem na ambiguidade de um mal amado. No duplo sentido. São do mal, mas são amados. São do mal, porque não foram bem amados. São, por origem, inventos de nossos desejos de subversão. Como os Voldemorts, são péssimos exemplares, trágicos, tristes e destinados, mais cedo ou mais tarde, ao fracasso. Diferentemente dos Voldemorts, porém, eles não são apenas maus, são malditos. São malvados fascinantes. Nos deixam apaixonados por sua arte, sua história, sua ebriez de sentidos e convenções. Nos deixam confusos também, pois queremos e não queremos ser como eles, viver a vida deles, experimentar a sua genialidade e esquisitice. E quando partem, seguindo um roteiro que já conhecíamos, ficamos mais tristes que felizes. Tudo em nós se torna indiviso entre ganhadores e vencidos. Amy nos deixa assim com um adeus engolido mais que abreviado, o aceno da mão contido no bolso de uma saudade ressentida e desviada.
Maldades necessárias. Precisamos de Voldemorts e de Amies para que o modelo de sociedade feliz e de pessoas honradas seja mantido. São a prova de que o bem (a felicidade, a honradez), identificado em nós, triunfa sobre o mal (o vício, a ganância), por eles representado. Mesmo que seja uma vitória só no imaginário, pois não há honradez e felicidade puras, nem um lado com o monopólio das virtudes e outro com os débitos dos vícios. Somos plurais em contradições, mas fingimos que fingimos que acreditamos que somos ou podemos ser a parte boa da maçã. Vivemos disso, dessa pressuposição renovada sempre que um mau e um maldito padecem. E padecem quase sempre e apenas na tela do cinema ou da tevê, talvez, como forma de virtualizar, de dar publicidade e de glamourizar, ao mesmo tempo, a sua morte.
Voldemort se desfez na ficção de um cenário londrino mágico. Amy se apagou no apartamento de um cenário londrino trágico. Coincidência teatral. É como se ambos, nesse instante, fossem da mesma matéria, personagens que cumpriram o script da culpa. Nossa, deles. Ao desligarmos a tevê ou sairmos do cinema, a realidade se reduz aos nossos passos, à pureza de nossos sentimentos e à felicidade de nossas famílias. Tudo lubrificado com o fim de Voldemort. E de Amy. Estamos a salvo com nossas vidinhas de inventores do cotidiano e de malfeitores, para esconder as nossas verdadeiras pragas e crueldades, nosso lado Amy, nosso deslize Voldemort. Ah, Amy, não há jeito, não há reabilitação. Somos assim, seremos assim. Creio que para sempre. Life is a losing game.

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