sexta-feira, 28 de maio de 2010

Hierarquia entre direitos fundamentais

"Quando penso no que eu perdi, eu pergunto: ´Quem se conhece melhor do que o cego?´ - pois cada pensamento se torna uma ferramenta." (Jorge Luis Borges)

A existência de hierarquias entre os direitos fundamentais é sempre produto de pré-compreensões e ideologias. Orientações liberais tendem a ver os direitos de defesa como mais importantes; vertentes igualitaristas priorizam os direitos sociais que promovam a inclusão de grupos desfavorecidos; republicanistas, por seu lado, funcionalizam todos os direitos em torno do processo democrático e de formação da vontade política.

Há quem afirme que, mesmo sem previsão constitucional expressa, exista uma hierarquia entre as normas jusfundamentais. Por exemplo, no caso brasileiro, pode-se interpretar “direitos e garantias”, previstos como barreiras materiais à emenda constitucional (art. 60, § 4º, IV, CRFB), como parte dos direitos estatuídos pelo artigo 5º, e, em razão disso, dar-lhe primazia formal. É tão desacertado e incomum quanto a Constituição tomar partido, fixando-lhe a hierarquia.

Mesmo quando não for admitida a hierarquia formal das normas, ainda há orientações que sustentam a hierarquia material entre os direitos, que podemos dividi-las entre os ontológicos, metodológicos e os práticos. Ontologicamente se defende a prevalência sempre das liberdades clássicas ou de alguns direitos reputados essenciais, como o direito à vida e à liberdade, segundo uma concepção de homem ou da natureza. Exatamente por isso, a perspectiva poderá ser deslocada para o homem situado ou para programas ou tarefas coletivas que persigam uma configuração sócio-política determinada. Bem se ver que a distinção para os adeptos da hierarquia formal é, permitido o trocadilho, de forma. Nega-se uma diferença de valor constitucional, para logo em seguida ser feita uma distinção, de acordo com um pano de fundo ideológico, entre direitos mais ou menos essenciais.

Os metodológicos, por sua vez, escondem-se atrás da necessidade técnica de se estabelecer, segundo regras, uma hierarquia de conteúdo entre as normas. Não há expresso apelo a uma ordem suprapositiva ou a uma dada concepção de mundo ou de homem, em geral, mas uma laboriosa e, às vezes, impenetrável pesquisa do direito constitucional positivo, segundo uma dicção precisa e própria, que lhes autoriza definir qual direito vem antes, qual interesse vem depois, qual virá, às vezes.

Em muitos casos, eles nos põem armadilhas: como dizer que a proibição de tortura ou de escravidão seja restringível ou submetida ao conflito do qual possa não prevalecer? Há quem, de um modo mais geral, admita o caráter irrestringível e, portanto, absoluto do direito de ser tratado como pessoa ou de não ser vítima de um projeto homicida. Normalmente, uns e outros admitem a impossibilidade de conflito ou da natureza desse direito apenas no plano moral, sem se aventurar no plano dos discursos jurídicos. Os práticos não devotam crenças em doutrinas políticas ou filosóficas, nem se dedicam puramente a desenvolver ferramentais técnicos de sondagem do material jurídico-positivo, cuidando antes de retirar das glosas à jurisprudência suas conclusões. O resultado de sua pesquisa indicará, concretamente, que direitos ou bens têm recebido especial proteção judicial.

“A hierarquia das normas”, escreveu Michel Tropper, “não pode ser suposta. Ela deve ser constatada após o exame dos valores relativos às diferentes normas emitidas pelos órgãos da ordem jurídica. Se admitirmos que a interpretação é a fase essencial da emissão dessas normas, faz-se necessário então concluir que o estudo da interpretação comanda aquele da hierarquia das normas e não o contrário (...). Se houver gradação, é somente entre as normas constitucionais postas pela interpretação do juiz no exercício de seu poder de controle.”

Tudo certo, não fosse o excesso de poder que o autor francês acaba por atribuir ao juiz.

Um comentário:

Bernardo Duarte disse...

Sinceramente, penso que não exista hierarquia entre Direitos Fundamentais. Ao menos a priori, penso que estejam todos no mesmo patamar. As características do caso, por certo, contribuirão para uma solução adequada de um eventual conflito(aparente, penso eu), que mais parece um concurso. Se puder defender que a solução advenha de uma análise in concreto das especificidades fáticas, as quais contribuam para construção da norma adequada para a solução do caso, talvez consiga defender, no fim das contas, a plausibilidade de uma leitura holística da Constituição, sem recair no mito da coerência a priori do positivismo clássico.

Se, como um cego consciente de minha cegueira, cada vez maior a cada vez que aprendo algo, porquanto a compreensão parcial me faz ver que "nada sei", tiver compreendido a mensagem de Adércio, penso que seja esse o recado que esteja querendo passar.