terça-feira, 20 de março de 2012

Mortos de fome


Todos estão falando da crise da Grécia e do empobrecimento da Europa, mas há uma crise e um empobrecimento muito mais sérios debaixo do tapete.

Pouca gente percebe, mas perto de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo. Isso mesmo, 1 bilhão, segundo a FAO. Paradoxalmente, nunca se produziram tantos cereais quanto hoje. A bagatela de 2,3 bilhões de toneladas por ano, suficiente para alimentar uma vez e meia o número de habitantes do planeta.

A conta não fecha devido à competição e à distribuição dessa comida toda. Menos da metade dela vai realmente para a mesa dos seres humanos. Mais de um terço segue para alimentar os animais e perto de 20% serve de matéria-prima ou de combustível para as máquinas.

Os países ricos, mesmo os "quebrados" europeus, ficam com os alimentos de melhor qualidade e a classe C emergente, principalmente nos BRICS, com o resto. Aliás, o crescimento dessa classe nos últimos anos, segundo o Banco Mundial, provocou uma severa alta nos preços dos alimentos. Esses dois ingredientes somados à reivindicação crescente de melhoria dos produtos agropecuários, à especulação dos mercados de commodities e aos danos das mudanças climáticas, quase sempre subestimados pelos economistas, tem levado a uma espécie de "swap alimentar": alimentam-se porcos em vez de gente.

Porcos dos Estados Unidos e do Brasil; gente da África subsaariana, onde se concentram os principais bolsões da fome. Não é que estejamos tão bem na foto assim. Levantamentos oficiais contabilizaram o ano passado 16,3 milhões de miseráveis, 10,5 milhões deles em condições subumanas no País. Como bem disse uma amiga esses dias, não vivem com ratos, vivem como ratos nos muquifos do sertão, das favelas ou da mata. Os estados da Bahia e do Maranhão são os campeões desse humilhante ranking.

É certo que desde o inicio dos anos noventa, houve redução pela metade no número de pobres no Brasil. Há, porém, uma discriminação invisível embutida nessa relativa conquista: o número dos que vivem sob os auspícios das viúvas da fome, mulheres que, por diversas razões, chefiam sozinhas suas famílias, continuou praticamente o mesmo. Motivo? Os programas de distribuição de renda simplesmente não as viram na geografia famélica [A extrema pobreza é feminina. OBRIG, 2009]. Mas ainda assim estamos melhores do que a África e alguns países asiáticos.


Os desvalidos da globalização só tende a aumentar e a concentrar-se nos guetos do mapa múndi, se não houver um concerto internacional. A fome mata muitas crianças e as que sobram têm dificuldade de aprender. São as sequelas da nova velha divisão internacional da fortuna. Sem educação adequada o destino é a pobreza e a fertilidade.

Estudos, como os realizados por Heck, Schoendorf, Ventura e Kiely [Delayed Childbearing by Education Level in the United States, 1969–1994], e por Currie e Moretti [Mother's education and the intergenerational transmission of human capital: Evidence from college openings], mostram que o índice de natalidade está diretamente relacionado com os níveis de escolaridade. Pais mais educados tendem a ter menos filhos. Os recursos, se não sobram, faltam menos, então. Menos filhos podem significar melhor qualidade de vida e melhor educação, tornando virtuoso o círculo.


É meio malthusiana a análise, mas tem seus acertos. Alguns iluminados, como os autores do Implications of Worldwide Population Growth for U.S. Security and Overseas Interests” (NSSM 200), o famoso “Relatório Kissinger,” e os Le Pens da vida que se multiplicam sem parar, sobretudo em tempo de crise, apresentam propostas nobres para solução do problema: esterilização em massa dos famintos. O pior é que muita gente dá ouvidos a esses desvarios morais. Não há alternativas que não passem por uma redistribuição dos ônus e bônus dessa tal globalização. A questão é: quem efetivamente dará o primeiro passo?

O silêncio tem levado a uma prática tão perversa quanto as sugestões dos Kissingers e Le Pens: quem for pobre que se exploda.

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