Virou moda dizer que o brasileiro tem uma ética flexível. Não vingou ainda a noção de que a lei também é, em muitas áreas, modulável. Certos deveres ou proibições não são efetivos, não pegam, não merecem respeito.
Para muita gente, a causa estaria no descompasso entre a norma e a consciência de sua validade. Não, evidentemente, a consciência jurídica de uma moral pós-convencional. Algo bem mais rasteiro. As leis seriam gravosas demais e violariam o sentido prático de sua efetividade. Para os particulares, seriam um excesso regulamentar ao contrato social subjacente à organização política e, por isso, objeto de uma desobediência civil, ainda que desorganizada e inorgânica. Para os agentes estatais, elas seriam bifrontes.
Corrupção à parte, o pessoal diretamente imbuído de sua aplicação se sente mais poderoso e tende a exagerar o próprio rigor das leis. Entretanto, o pessoal da cobertura burocrática tenta atenuar a dureza legal, normalmente por pressões dos particulares mais revoltados com a sanha dos fiscais do rés-do-chão. Enquanto a reforma mais ampla não vem, criam-se mecanismos legais de isenções como moratórias ou mesmo anistias.
Os benefícios são variados e variados os campos de aplicação. Quem deixa de pagar tributos, por exemplo, quase sempre é aquinhoado com convincentes descontos ou alongamento do débito a perder de vista. A quem interessa esse drible legal? À voracidade fiscal. A lógica é sempre da arrecadação, embora, aqui e ali, leve-se em conta a importância do inadimplente. Não raras as vezes que o próprio direito penal, última seara de repressão, vira instrumento de cobrança financeira.
As multas eleitorais são outro filão dessa benemerência estatal. As leis eleitorais procuram estabelecer condições mínimas de igualdade entre os candidatos, especialmente restringindo propagandas fora de hora ou abusivas. Não têm jeito. Em todas as eleições, os postulantes aos cargos eletivos infringem tais limitações e sofrem de leves a pesadas multas. Mas para quê? No ano seguinte, aprovam-se normas de anistia. A Justiça Eleitoral vira motivo de chacota.
Veja-se o que sucedeu agora com o Código Floresta. Há, nele, a obrigação de os donos de terra delimitarem e protegerem áreas de reserva legal e as de preservação permanente. Inicialmente, não havia o dever formal de averbação dessas áreas, especialmente as de reserva legal, uma vez que as APPs estão definidas no próprio Código. Como boa política, a obrigação foi criada e o governo federal resolveu engrossar a voz.
Os proprietários teriam até final de 2008 para fazer as devidas averbações e recuperar aquelas áreas que se encontrassem degradadas, sob pena de multa. Esse prazo acabou sendo prorrogado por mais um ano e, nesta semana, por outros três anos com o benefício de suspensão das multas aplicadas aos que concordarem com as normas do Programa Mais Ambiente (PMA), criado pelo decreto que o instituiu (Decreto 7.029/2009).
Não precisa grande esforço para descobrir quem são os interessados dessa benesse ambiental em plena COP15. Os sinais de que as regras sobre a reserva legal serão alteradas são nítidos. E o governo já havia acenado antes que deverá abrandar as exigências do Código Florestal, de modo que o próprio PMA lançado com o decreto vira conto de ninar (os grandes desmatadores).
O pior dessa flexibilidade legal não é nem o achaque à política ecológica nem à Justiça Eleitoral ou ao direito penal, mas à difusão da ideia de que, no Brasil, ganha-se mais em descumprir do que em cumprir a lei. Noutra versão: bobo quem a respeita.Por isso que o pessoal da cobertura vive em festas. No rés-do-chão, fica-se com as sobras. E alguns ainda acham bom.
3 comentários:
Uma coisa, de fato, precisa ficar mais clara no Brasil: abertura textual não pode significar somente (e simplesmente) flexibilidade do Direito. A subversão completa dos sentidos possíveis extraíveis dos textos normativos, seja a partir da edição de decretos, de novas leis, ou, ainda, de interpretações (im)possíveis, desfigura o próprio Direito. É certo que esses são apenas três dos muitos subterfúgios existentes para burlar o Direito e manter uma perversa onda de privilégios. Não que a segurança jurídica esteja no texto; mas é importante lembrar que o texto possui os seus limites e, sobretudo, um caráter coercitivo. Se, no fim das contas, ele perder o seu poder de coação, mesmo a busca pela legitimidade esvair-se-á. E então voltaremos à época dos costumes de casta; se é que algum dia nós a abandonamos em "nosso" país.
A existência de "claúsulas abertas" no texto normativo realmente contribui para a flexibilidade legal. No entanto, considero que o maior problema esteja na cultura do brasileiro de querer "levar vantagem" em tudo, principalmente descumprindo a lei, e na existência de uma fiscalização precária e sempre sujeita à corrupção.
A existência de "claúsulas abertas" no texto normativo realmente contribui para a flexibilidade legal. No entanto, considero que o maior problema esteja na cultura do brasileiro de querer "levar vantagem" em tudo, principalmente descumprindo a lei, e na existência de uma fiscalização precária e sempre sujeita à corrupção.
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