domingo, 8 de novembro de 2009

Democracia: 100 meias palavras

Es tan corto el amor,
y tan largo el olvido.
(Pablo Neruda)
A democracia é a melhor forma e regime de governo? A pergunta pode levar desconfiança aos espíritos desavisados, aos dogmáticos e aos que sofreram na carne os ferros da alternativa autoritária. Não há dúvidas de que, feito Churchill, se possa dizer que ela é a pior, excetuadas todas as outras já experimentadas pelas sociedades humanas.
Mas é preciso que desmontemos algumas afirmações sobre a dama do demos que se colocam hoje acima de qualquer juízo de validade: a democracia é o governo do povo. Não é. O povo é um pretexto de legitimação, um apelo retórico ou um corpo político, usando aqui o sentido foucaultiano, à mercê do poder de poucos.
Ele vai às urnas quase como um autômato programado por informações midiáticas devidamente filtradas. Sua liberdade de consciência é quase uma quimera dessas que o direito constrói em favor da política. A democracia, essa que nos chega à porta e à tevê, não é de povo, povo mesmo, é de poucos.
Democracia também não é o governo para o povo. Os benefícios que ele, povo, aufere são poucos e, em que pese o discurso oficial, são uma espécie de efeito colateral das chamadas políticas de bem comum que mais refletem projetos particulares de segmentos sociais hegemônicos. A democracia, essa das formas e dos discursos, é para poucos; não para o povo, povo mesmo.
Tampouco a democracia é o governo pelo povo. Povo, como entendemos em nossos dias, foi uma invenção do liberalismo. Uma referência política e simbólica mais que uma existência sociológica. Primeiro: o povo eram todos os que se submetiam à jurisdição de um Estado nação; segundo: servia de fonte virtual dos poderes de Estado e de destinatários reais de suas ordens, tudo ao mesmo tempo.
No começo, povo, povo mesmo sequer possuía o status de cidadão, a menos que tivesse patrimônio suficiente, mas aí deixava de ser povo, povo mesmo. Depois que cidadão virou quase todo mundo com o sufrágio universal, arquitetou-se um processo de eleições que continua, na prática, a excluir o povo sem posses, aquele povo, povo mesmo. A democracia, essa dos balcões e mercados, é pelos poucos, das cortes às bufarias de gravatas, noves fora povo, povo mesmo.
A democracia é senhora de pouca idade e, assim como a estética, foi mais preterida do que desejada. Os Antigos e Medievais acreditavam que a melhor forma de governo era a monarquia. Os Modernos preferiram a democracia aristocrática, essa da porta e da tevê, das formas e dos discursos, essa dos balcões e mercados, há duzentos e poucos anos, embora o adjetivo tenha ficado apenas subentendido. Mesmo assim caiu nas seduções pelo governo da força, da oligarquia sem democracia, por diversas vezes.
Governo de força ou simulacros que se perpetuam em diversos cantos do planeta mesmo hoje. A democracia se diz universal, mas enfrenta sérias resistências naqueles países de tradições milenares firmadas na figura da autoridade, mais do que da pulverização de idiossincrasias e de egos. O que não quer dizer que nas tais sociedades democráticas não tenha ela também seus problemas. As exceções fáticas diárias (exclusões do povo, povo mesmo) e jurídicas (os cismas autoritários) estão aí à prova. E há razões para esses tormentos.
Economicamente, ela é muito dispendiosa e, para os setores de dominação, cujos nomes e qualidades variaram de tempo para tempo, trabalhosa. Não podem mandar como antes, fazendo referência ao reino de sobrenatural, pois têm que, a cada dia, renovar os dogmas e a fé do povo, seguindo a um processo jurídico e político, ainda que manipulável, mas a um processo, cujas regras estipulam algumas limitações ao mando. Está aí a defesa dessa democracia das formas e dos negócios: exige um mínimo de atenção às normas. Melhor que nada.
Muitos dizem que é pouco, pois os meios de comunicações oligopolizados, a dependência do poder econômico desses meios, o culto ao individualismo estético e consumista, a cultura da riqueza material, o profissionalismo personalista dos políticos, as eleições viciadas, tudo acrescido e misturado à pimenta do desejo humano pelo poder jamais darão outra roupagem e corpo à vida política. Seja qual for o nome, a ideia e o conceito que tiverem.
Um otimista de teima acredita que toda essa análise é datada, seja para o modelo de democracia elitista ou aristocrática que vivemos, de povo sem povo mesmo, seja para a falta de inventividade de novas formas de coexistência humana sem as marcas da subjugação de muitos a alguns.
Quando se olha para trás e enxergam-se nomes, entre sanguinários e tiranos, como Qin Shi Huang (259 a.C-210 a.C), Calígula (12-41), Ivan, o Terrível (1530-1584), Leopoldo II (1835-1909), Josef Stalin (1878-1953), Adolf Hitler (1889-1945) e Pol Pot (1928-1998), somos tentados a enxergar um progresso da humanidade, a misturar o racionalismo kantiano ao pragmatismo de Churchill, pois as piores espécies de governantes e de governos recentes foram, em geral, bem menos perversos do que todos aqueles em suas épocas como Mugabe, a sobrevivência da exceção, é bem pior do que Berlusconi, a exceção da sobrevivência, hoje.
Se há, então, progresso, é porque se torna possível sonhar. Democracia não precisa ser esse teatro de marionetes, nem o governo de poucos, por poucos e para poucos, em nome simbólico do povo. A história, na verdade, ainda nem começou direito para ela. E há um povo que até hoje só vive na palavra da política ou na miséria do domínio, podendo ganhar as formas e conteúdos do real um dia, qualquer hora, agora mesmo. Mas que povo? Esse povo (povo mesmo) de palavras.
Sonhar faz bem, agir mais ainda.

Nenhum comentário: