terça-feira, 10 de novembro de 2009

O minivestido de Geisy

Os direitos fundamentais se desenvolveram no século XVIII e XIX como uma resistência ao poder invasivo do Estado na vida privada. Se cento e alguns anos depois, a revolução bolchevique proclamava aos ventos “todo poder para os sovietes”, nos setecentos e oitocentos, os gritos de ordem eram “todo poder para os indivíduos”.
Poder político, para compor os órgãos do Estado; poder social, para buscar o projeto de vida que lhes apetecesse; poder econômico, para se enriquecer; e poder jurídico, para impor todos os demais poderes nos quadros institucionais do Estado. O Estado era o inimigo a ser combatido. Todavia, contra o próprio Estado, era o Estado que haveria de proteger aqueles poderes, especialmente por meio dos direitos do homem e do cidadão, nome primeiro do que entendemos hoje como direitos fundamentais.
Curiosa contradição que se explica pela fratura no conceito unitário de soberania estatal: o Estado eram muitos. Ou, na linguagem da teoria política e do direito da época, as funções estatais eram diversas. A imagem que ocorria às mentes modernas de Estado-inimigo era, sobretudo, a do Poder Executivo. Os direitos fundamentais (ou do homem) deveriam ser protegidos contra o Executivo (lugar especial do Estado-Polícia) pelo Estado-Legislativo, máxima expressão da nova soberania indivisível: a popular.
A lei era a maior salvaguarda da liberdade. Não durou muito essa crença, pois o Estado-legislador também se mostrou perigoso aos poderes políticos, econômicos e sociais. O poder jurídico migrou sobretudo para a gravidade do Estado-Judiciário. Seriam os juízes os grandes protetores dos direitos. Crença que perdura até os nossos dias.
Quando descobrirmos que os juízes também representam ameaça aos poderes, para onde recorreremos? Muitos dizem que olharemos, enfim, para a sociedade: “todo poder para a sociedade”. Mas qual sociedade? Ela mesma é cenário de opressão e injustiça. Grupos sociais poderosos são capazes de impor unilateralmente a sua vontade, como uma espécie de “poder” ou “direito potestativo”, contra todos nós. Tanto é assim que, nos debates constitucionais, já falamos em “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, a significar nada mais nada menos do que a aplicação daqueles direitos, nascidos como resistência às arbitrariedades do Estado, contra os agentes privados.
Entretanto, essa nova expressão dos direitos (nova em termos, pois apareceu com as primeiras manfestações dos direitos trabalhistas) ainda causa arrepios em muita gente: Como podemos falar de direitos fundamentais em face de “iguais” (daí o adjetivo “horizontal”) sem desvirtuarmos o seu significado original? Corremos o risco, dizem, de “constitucionalização” de tudo. Explica-se: Para certa corrente da eficácia horizontal, os direitos se aplicam às relações privadas diretamente.
O juiz não precisa olhar para as regras do Código Civil ou Processual para resolver um conflito entre particulares. Vale-se dos direitos fundamentais expressos ou implícitos na Constituição diretamente. Notemos que, em vista desse quadro, o legislador se torna cada vez mais supérfluo e o juiz, cada vez mais o centro do sistema jurídico e político. Se não precisamos mais dos Códigos e leis, para que o Legislativo?
É claro que esse é um argumento um tanto quanto terrorista ou caricato, mas ele traduz o problema de legitimidade que a tese da eficácia horizontal transporta. Significa dizer que os direitos fundamentais precisarão sempre do legislador para serem aplicados às relações entre particulares?
Não. Os direitos fundamentais devem ser reivindicados sempre que houver situações de injustiça e de arbítrio, decorrentes de grave assimetria de poder público ou privado. Em regra, estão traduzidos em leis que, por si apenas, podem resolver o problema. Em muitos casos, no entanto, as leis não existem ou não existem com suficiência bastante para solucionar plenamente o quadro de injustiça. Os direitos estarão aí como salvaguardas.
Deu no noticiário destes dias que a estudante de Turismo Geisy Arruda, de 20 anos, foi hostilizada por quase 700 colegas. O motivo? Ela ter usado um vestido muito curto dentro do campus da Universidade em que era matriculada. Depois de uma sindicância interna, com poucos elementos de garantia à defesa da estudante, chegou-se à conclusão de que ela havia provocado os colegas, o que, na versão da Universidade, “resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar.”
Como a garota sempre teve uma postura incompatível com o espaço universitário, desrespeitando “a dignidade acadêmica e a moralidade”, por adotar “atitudes insinuantes” com o uso frequente de roupas curtas e decotes generosos, os doutos líderes da Casa do Saber resolveram expulsá-la de seus quadros.
Deixemos de lado vários aspectos envolvidos na questão como a coerência pedagógica, o caráter de prestação de serviços públicos educacionais e os rigores éticos e estéticos da Universidade, a reminiscência dos costumes vitorianos e da inquisição ou da conduta violenta do nazifacismo contra as diferenças, para nos centrarmos em seu aspecto jurídico apenas, como foi a alternativa adotada pela Universidade.
Claramente, o equacionamento das normas constitucionais em confronto não foi o mais adequado. A autonomia universitária ou argumentos de moralidade acadêmica não podem ser usados para violentar os direitos fundamentais.
A aluna ou ex-aluna pode agora valer-se das regras da responsabilidade civil contra o vexame extra por que passou, pela discriminação e falta de justificativas adequadas para a sua expulsão. Mas pode ir além, requerer a sua readmissão por ter a Universidade violado diversos direitos fundamentais seus, desde o devido processo legal como a vedação à discriminação, a intimidade e a identidade pessoal, sem falar que a sua dignidade foi, digamos, arranhada não apenas pelo mérito da decisão, mas pela forma e pelos seus fundamentos.
Eis um exemplo atual e nítido de que a eficácia indireta (via normas legais e suas expressões abertas) e direta (das normas constitucionais) dos direitos fundamentais nem sempre se excluem, antes se complementam. Exemplo também de que o entendimento dos direitos fundamentais não pode ficar estagnado em suas primeiras expressões históricas. São direitos que refletem as necessidades novas e velhas de uma sociedade hipercomplexa, sendo, por isso mesmo, postulações jurídicas e políticas, com e contra a sociedade, com e contra o Estado.
A história não acabou. Sabe bem Geisy.

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