Há uma rica e, às vezes, hipócrita discussão em torno do direito à imagem. Qual o prazo de validade de um consentimento dado por alguém para uso comercial de sua imagem? O Caso Xuxa é exemplar. Roberto Kaz da FSP o resumiu como se encontra em 8/4/2011:
Limites do consentimento ao uso da imagem. Ou o outro lado do esquecimento.
Em 2009, Xuxa Meneghel venceu, em primeira instância, um processo contra a Band, pela divulgação de fotos suas, tiradas para a revista "Playboy", em 1982. Após a publicação da sentença, ela declarou, com cansaço: "Tenho que provar quase diariamente que o que eu faço hoje não tem nada ver com o meu passado". Luiz Claudio Moreira, diretor comercial da Xuxa Promoções, explica: "Quando a Xuxa filmou "Amor Estranho Amor", ela tinha acabado de completar 18 anos. Enxerga ela no presente. Mãe de uma menina de 12 anos, presidente da Fundação Xuxa Meneghel, que atende mil pessoas por dia. As fotos e o filme não colaboram em nada com a carreira dela".
Direito à imagem e contrato
No dia 23 de março, um despacho, publicado no Diário da Justiça do Rio de Janeiro, convocou o cineasta Aníbal Massaíni Neto e o advogado Luiz Claudio Moreira, diretor comercial da Xuxa Promoções, a comparecer a uma audiência conciliatória. Os dois concordaram e devem se encontrar, neste mês, na 2º Vara Cível da Barra da Tijuca (a data ainda não foi agendada). Será a primeira tentativa de pôr fim a um processo que corre desde fevereiro de 2010.
Massaíni, produtor de "Pelé Eterno", e Moreira, braço direito da apresentadora Xuxa Meneghel, brigam pelos direitos do filme "Amor Estranho Amor", de Walter Hugo Khouri (1929-2003). Produzido por Massaíni -e protagonizado por Tarcísio Meira e Vera Fischer-, o filme, de 1982, tornou-se um "cult" em função de uma cena em que Xuxa, então uma jovem atriz, aparece nua com um menino de 12 anos (à época, ela ainda não apresentava programas infantis).
Relançado em 1987 e 1991, "Amor Estranho Amor" foi assistido por mais de 1 milhão de pessoas. Em 1992, já "rainha dos baixinhos", Xuxa conseguiu proibir, judicialmente, que o filme fosse lançado em vídeo (alegou que o contrato dizia respeito apenas à veiculação em salas de cinema). Em seguida, para blindar-se em definitivo de seu passado, comprou de Massaíni os direitos para o cinema. Ficou acertado que a renovação seria anual, a um valor de US$ 60 mil (R$ 97 mil).
De 1992, quando o contrato foi firmado, a 2009, quando foi extinto, Massaíni embolsou, pelo silêncio do filme, mais de R$ 1 milhão. Dois anos atrás, em vez de cobrar o pagamento, aguardou o prazo (17 de maio) expirar. Cinco meses depois, enviou um e-mail a Moreira, alegando que "a não renovação do nosso Instrumento de Cessão implicou em sua extinção".
"Como não me procuraram, fiquei quieto", disse. "Queria relançar o filme."
Em março de 2010, quando estava na Cinearte, sua produtora em São Paulo, Aníbal Massaíni Neto foi surpreendido com uma notificação judicial dizendo que "Amor Estranho Amor" não poderia ser relançado. O descumprimento acarretaria em multa de R$ 200 mil. A decisão, do juiz Mario Cunha Olinto Filho, decorrera de um processo aberto semanas antes, pela Xuxa Promoções, na 2ª Vara Cível da Barra da Tijuca, no Rio.
A Folha teve acesso aos autos, em que os advogados de Xuxa Meneghel atestam que a cessão dos direitos do filme não havia sido renovada porque Massaíni pedira "cerca de R$ 240 mil -mais do que o dobro do valor previsto contratualmente- para a renovação". O documento prosseguia: "O Sr. Aníbal Massaíni Neto alegou, sem o menor jus, aliás, que, desde o pacto celebrado em 1992, o dólar havia sofrido desvalorização, e que, portanto, seria justo receber uma compensação".
Massaíni defende que tal pedido jamais ocorreu. "Quando o contrato expirou, avisei ao Luiz Claudio [Moreira, diretor comercial da Xuxa Produções] que meu interesse era relançar o filme. Como ele insistia em fazer uma contraproposta, e chegou a me enviar uma planilha com atualizações do dólar, eu fiz uma correção, dizendo que o valor deveria ser ajustado por outras alíquotas."
O produtor alega que nunca houve, da sua parte, uma frase dizendo "eu quero tanto": "Não estou interessado em valor. Quem pensa em valor são eles. Quero lançar o filme em película, vender para fora. Tenho o palpite de que daria certo." (Desde "Pelé Eterno", de 2004, Massaíni não produziu outro filme.) Luiz Claudio Moreira diz que, em anos anteriores, o prazo limite para o pagamento dos direitos (17 de maio) não costumou ser cumprido ao pé da letra. "Em 2001, depositei em 12 de setembro. Em 2003, em 3 de junho", disse, mostrando os comprovantes.
"Esse contrato nunca foi tratado com o rigor com que o Massaíni resolveu tratá-lo em 2009", prosseguiu Moreira. "E não era um contrato de 18 dias ou 18 meses. Era um contrato de 18 anos. Imaginei que havia uma relação de confiança." Em resposta, o produtor disse não se lembrar de "depósitos feitos à posteriori". Em seguida, completou: "E isso não dá, ao Luiz Claudio, o direito de transformá-los em um precedente".
OBJETO PROIBIDO Massaíni afirma que um possível relançamento de "Amor Estranho Amor" não visa prejudicar a carreira de Xuxa: "Quero apenas afirmar o mérito do filme".
Ele considera "terrível" ser dono de uma obra que não pode circular. "E que, ainda por cima, é pirateada por todos os lados, na internet." Por isso, findo o contrato, procurou a apresentadora, no intuito de fazê-la participar da nova divulgação. "Em 1982, a Xuxa fez o filme com muito orgulho, participou de pré-estreias, inclusive em Cannes. Falei ao Luiz Claudio: "Em vez de atrair a atenção pelo objeto proibido, vamos relançá-lo"."
A proposta não foi aceita.
A crítica da FSP a essa confusão toda
Em inúmeros casos, não apenas no cinema, a Justiça tem se tornado um obstáculo à circulação de bens culturais. No caso de "Amor, Estranho Amor", a interdição se deu por Xuxa considerar justo preservar sua imagem de "rainha dos baixinhos": talvez não fosse de bom tom vê-la num bordel.
Cuidado talvez excessivo, que não existia quando aceitou o papel de Tâmara, mesmo porque ele convinha a uma jovem atriz cujo principal atributo era ter posado nua em revista masculina, e quando trabalhar com Khouri significava, sim, prestígio.
Jogado para baixo do tapete, esse momento de sua vida artística (talvez o melhor) acaba vítima da mesma hipocrisia que divide nossa vida sexual e política entre o bordel e o lar, a rua e o santuário, o secreto (indecoroso) e o público (pomposo). Partição de que a arte procura, em geral, escapar.
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