quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A crise em Honduras

É difícil aceitar que um presidente da República, ainda que deposto, seja retirado de sua casa de pijamas por forças militares, posto num avião e deixado num país vizinho. A truculência da medida arrepia a espinha de qualquer um e é ainda mais repulsiva, por evocar atitudes vividas no Brasil há pouco tempo.
Talvez esteja nesse ato excessivo o pecado do atual regime político de Honduras. Tudo (ou quase tudo) o mais é aplicação das previsões constitucionais. A Constituição daquele país, tentando fugir da sina latinoamericana do personalismo político ou, como escuto coincidentemente agora Caetano, de seus "ridículos tiranos", proibiu a possibilidade de reeleição para a presidência da República (arts. 4o e 239) e ainda pôs a salvo do poder de emenda constitucional, como cláusula pétrea, portanto, essa proibição (art. 374).
Manuel Zelaya, no exercício da Presidência, não se conformou com a vedação. Como sabemos, seguia o roteiro de outros presidentes latinoamericanos recentes e passados. Contra a Constituição, pôs em jogo a vontade popular que, em referendo, haveria de dizer, ela sim, não o texto constitucional, se poderia ou não ser reeleito. Queria mais: a convocação de uma assembléia nacional constituinte.
O comportamento é contrário à idéia de Constituição. Recorrer à consulta do eleitorado para deliberadamente contrariar o regramento constitucional está fora dos seus propósitos. A menos que se admita, contra essa idéia, que se vive em permanente estado constituinte, de modo que se pode a qualquer momento desafiar a estabilidade e permanência do texto constitucional.
Entretanto, a tese que prevalece, para evitar aventureiros políticos e reforçar o sentido de autoidentidade, é a de que a vontade popular constituinte se manifesta apenas em ambiente de profunda e difusa insatisfação com a ordem constitucional vigente, com suas normas e valores, sua legitimidade e legalidade, criando o espaço propício e extraordinário (suficientemente perigoso também) para adotar outra Constituição.
Embora distante de Honduras, procurei acompanhar os acontecimentos e recuperar a ocorrência dos fatos. Por mais apoiadores que Zelaya tivesse, não havia clima constituinte para definir o instante hondurenho como excepcional a ponto de sustentar uma ruptura institucional. Pois era exatamente isso que estava preste a ocorrer: uma ruptura institucional nos moldes de uma consulta popular que sobreporia a Constituição.
Pois bem, a Suprema Corte do país declarou inconstitucional a convocação feita pelo presidente para que o povo fosse as urnas. O Congresso Nacional também aprovou uma lei que vedava consultas populares 180 dias antes e depois das eleições presidenciais marcadas para novembro de 2009. Entretanto, Zelaya não sucumbiu às determinações da Corte ou da lei e insistiu que realizaria a consulta de toda forma.
Acontece que o artigo 4o, partes 2 e 3, da Constituição prescreve: "A alternância no exercício da Presidência da República é obrigatória. A infração desta norma constitui delito de traição à Pátria". A segunda parte do artigo 239 que proíbe a reeleição completa: "Quem violar esta disposição ou propuser sua reforma, assim como aqueles que o apoiarem direta ou indiretamente, cessarão de imediato no desempenho de seus respectivos cargos, ficando inabilitados por dez anos para o exercício de toda função pública".
Há ainda reforço dos artigos 2.2 e 3 que reprovam de maneira contundente a usurpação constitucional pelos poderes constituídos, chegando a reconhecer o direito de o povo recorrer à insurreição em defesa da própria Constituição.
O processo de afastamento é, todavia, lacunoso. O artigo 319.2, em conjunto com o 205.15, dá à Suprema Corte o poder para julgar os delitos oficiais e comuns dos altos funcionários da República, quando o Congresso Nacional autorizar. Mais não diz, o que, para alguns, torna a disposição não autoaplicável, visão, sem embargo, equivocada.
Os registros de como se deu o afastamento presidencial são controversos. Segundo uma das versões do Congresso, Zelaya teria renunciado ao cargo em carta dirigida à Casa. Zelaya nega que a tenha escrito ou assinado. O decreto de destituição, entretanto, não faz menção à renúncia.
Antes, julga o presidente, ou cidadão Manuel Zelaya Rosales, como faz questão de a ele se referir, inabilitado para o cargo em decorrência de “conduta irregular (...) ao violentar de maneira reiterada a fidelidade da República e o estatuto jurídico de nosso país, pondo em iminente perigo o Estado de Direito e o sistema de governo democrático que o povo por vontade democrática”. O Congresso poderia ter feito o que fez?
Não há bases constitucionais expressas para tanto e todas as menções normativas que o decreto faz não autorizam a destituição pelos congressistas. Horas depois da reunião congressual, contudo, a Suprema Corte divulgou nota em que reconhecia a legalidade da medida, inclusive da destituição e retirada do presidente do território hondurenho. Informava, ainda, que dois dias antes autorizara as Forças Armadas a adotar todas as providências necessárias para impedir que o Executivo levasse adiante seu projeto de consulta popular.
Seja como for, declarada a vacância, o cargo foi ocupado pelo presidente do Congresso, em virtude da anterior renúncia do vice-presidente, conforme determina o artigo constitucional 242. As falhas do devido processo constitucional de destituição se agravaram com a sua execução truculenta e distante das formas jurídicas.
A Constituição hondurenha assegura, dentre outros direitos, o respeito à integridade psicofísica e moral dos indivíduos: "Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade será tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano" (art. 68).
O artigo 84.3 dispõe que o preso ou detento deve ser informado no ato e com toda clareza de seus direitos e dos fatos que se lhe imputam, sendo-lhe permitido comunicar-se com um parente ou pessoa de sua escolha. O artigo 90 estabelece, como garantia contra a arbitrariedade, o devido processo legal, bem assim, o 82 assegura o direito de defesa. O artigo 97, por sua vez, dispõe que ninguém poderá ser condenado a penas perpétuas, infamantes, proscritivas ou confiscatórias.
E, ainda mais pertinente, o artigo 102 determina que "nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro". Tais disposições valem para qualquer cidadão, mas não valem para o presidente da República?. Pois respondo: valem.
E, por mais receio que as lideranças políticas hondurenhas tivessem com o chavismo de Zelaya e com a premência do quadro institucional, não poderiam ter feito o que fizeram. Em resumo: com más ou boas intenções, foi um golpe de Estado, decretado pelo Congresso com apoio da Suprema Corte e dos militares. Infelizmente.

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