A proposta de Jürgen Habermas para a organização internacional dos países que assegure os direitos humanos se define como alternativa à dicotomia kantiana entre um federalismo de Estados livres e uma república mundial. Ela defende basicamente uma organização em forma de redes, em que se preservam as autonomias dos Estados atuais, associadas a um grau de comprometimento cooperativo de todos (Estados, organismos regionais e internacionais) com alguns valores mínimos que comporiam o "cosmopolitismo moral".
Tais valores seriam nada mais nada menos do que os direitos humanos ou projeções jurídicas e políticas da inclusividade, do individualismo e da igualdade. Institucionalmente, no lugar de um Estado mundial ou de formas similares, teríamos um "sistema global de múltiplos níveis". Essa é a engenharia proposta por ele e que angariou críticos de várias frentes (WENDT, Alexander. "Why a World State is Inevitable". European Journal of International Relations, v. 9, n. 4, 2003, p. 491–542).
É preciso destacar, primeiramente, que, como vemos no breve resumo feito acima, a teoria de direitos humanos de Habermas não se contenta com um cosmopolismo puramente moral, como sucede com Charles R. Beitz ("Cosmopolitan liberalism and the states system". In BROWN, Chris (ed). Political restructuring in Europe: ethical perspectives. London; York: Routledge. 1994, p. 119 et seq, 124), mas requer uma estrutura política e jurídica de institucionalização. Significa dizer que tais direitos são mais do que simples reivindicações morais, são também pretensões políticas e jurídicas que, em síntese, protegem a liberdade individual de escolha da concepção de felicidade ou vida boa.
Reivindicações, é bom que se repita, perante uma estrutura organizacional, seja interna, seja internacionalmente. Eis a razão de se dizer que o cosmopolitismo habermasiano é também institucional. Mas isso não significa que, para efetividade desses direitos, tenhamos que reproduzir no nível mundial as estruturas do Estado-nação.
Em primeiro lugar, porque a própria noção de soberania nacional já teria sido bastante relativizada pelos processos de globalização, acelerado nos últimos cinquenta anos. Os insistentes deslocamentos de pessoas, as ampliadas dependências econômicas e, até certo ponto, regulatórias entre os Estados, as redes institucionais formadas por eles, bilateral ou multilateralmente, o desenvolvimento quase autônomo dos mercados financeiros globais e de uma esfera pública transfronteira, ligados ao fortalecimento dos institutos do direito internacional, embaçaram as fronteiras dos poderes tradicionais dos Estados nacionais.
Depois e principalmente, a ênfase deve ser dada aos "cidadãos livres e iguais do mundo": os indivíduos devem ter seus direitos respeitados, independente da nacionalidade ou etnia, por toda comunidade das nações. Para tanto, não seria preciso a criação de um superestado ou a reprodução internacional de suas instituições nacionais. Teríamos, diferentemente, um sistema multinível de governança, integrado por Estados democráticos em nível nacional, por organismos por eles formados em nível regional e por uma organização mundial com poderes restritos à manutenção da paz e a garantia dos direitos humanos. (HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other. Studies in Political Theory. Ciaran Cronin; Pablo de Greiff. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 1996, p. 180).
A pergunta óbvia que se impõe é: esse arranjo minimalista não compromete o princípio da soberania popular e a própria democracia? Não necessariamente, de acordo com Habermas. A soberania popular deve ser considerada em sentido processual e não substantivo. Não são sujeitos deliberantes que a definem, quer diretamente, como defendem os republicanistas e algumas versões da democracia deliberativa, quer indiretamente, por seus representantes eleitos, segundo os liberais, mas processos anônimos de comunicação, orientados pelos direitos humanos, que se propõem a adotar as decisões vinculantes (p. 251). No plano global, a legitimidade das decisões decorreria primariamente das “formas organizacionais de um sistema internacional de negociação, que já existe hoje em outras arenas políticas.”(p. 109).
Ronald Tinnevelt e Thomas Mertens, entrentanto, veem profunda contradição entre essa proposta de Habermas e sua teoria discursiva do direito e da democracia, que pressupõe a autodeterminação entre esfera pública (da autonomia política) e esfera privada (da autonomia privada). Essa implicação é, de certa maneira, negada, quando Habermas, além de refutar paralelismo entre a teoria do contrato social e o desenvolvimento de um Estado mundial, defendido por alguns, acusa a impossibilidade de transpor para um plano global a existência de instrumentos participativos e órgãos de deliberação tipicamente estatais (The World State: A Forbidding Nightmare of Tyranny? Habermas on the Institutional Implications of Moral Cosmopolitanism. German Law Journal, v. 10, n. 1, January 2009, p. 63-80).
A razão? Não há política sem alguma forma de exclusão. Ou, por outra forma dita, a autodeterminação e a identidade políticas, que definem uma comunidade política concreta, implicam a distinção entre cidadãos e não-membros da comunidade. No nível global, não existe bem definida a identidade, o "nós" (self) do autogoverno, nem poderá ser desenvolvida algum dia, porque a autodeterminação política pressupõe uma delimitação social e territorial.(Jürgen Habermas. The Postnational Constellation: Political Essays. Cambridge: MIT Press 2001, p. 71,107).
Notemos que essa afirmação contradiz o princípio da reciprocidade, caro à teoria habermasiana. Que diz o princípio? Os afetados por uma decisão têm o direito de dela participar adequadamente. Se é possível a defesa de um sistema multinível sem Estado com o propósito de proteção de direitos humanos, parece previsível que as decisões tomadas por esse sistema, inclusive no plano global, requeiram participação dos afetados, especialmente se envolverem conflitos de direitos, o que não é raro de acontecer. Como proceder com a organização internacional rarefeita proposta por Habermas, em tais hipóteses? Habermas ainda não disse.
Essas críticas revelam a incompatibilidade do sistema multinível habermasiano e seu modelo dual de democracia. Como sabemos, a política democrática, segundo o filósofo alemão, é resultado de um duplo processo de formação da opinião e vontade. Um desenvolvido em espaços informais (esfera público-política integrada por grupos de interesses, academia, associações civis, por exemplo); outro, por meio de órgãos e ritos constitucionalmente institucionalizados (parlamento, executivo, sistema de justiça, processo legislativo e processo judicial) (The Inclusion, p. 373).
Pois bem, segundo Tinnevelt e Mertens, Habermas se contenta com o modelo liberal de democracia no plano internacional. Uma organização mundial de competências mínimas acaba por estabelecer uma prioridade dos direitos sobre a democracia. O resgate da equipotência entre direitos e democracia, entre liberdades e participação política, apenas se daria se Habermas tivesse de assumir a possibilidade, no mínimo, de uma república mundial.
Talvez seja exagerada a conclusão dos dois autores. Na verdade, as formas institucionalizadas de participação dão lugar à esfera pública informal. Habermas acredita nas possibilidades de controle da agenda política mundial por parte da opinião pública internacional mais do que nos complicados mecanismos de participação institucionalizada, existentes nacionalmente, elevados ao nível global. Um grande Estado mundial traria mais riscos do que vantagens.
De toda sorte, a solução alvitrada por Habermas reduz o poder democrático na dualidade constitutiva por ele defendida e, de quebra, compromete a tese seminal de cooriginalidade entre autonomia pública e autonomia privada.
Um comentário:
Muito interessante...
Aliás, em entrevista sobre o Terrorismo, concedida a Borradori, Habermas acabou respondendo algumas questões acerca do tema tratado em seu texto professor.
Lá, Habermas sustentou que a tensão entre metas pragmáticas de poder e metas mais normativas só seria resolvida se, um dia, as grandes alianças de âmbito continental, como a União Européia, a Nafta e a Asean, por exemplo, se desenvolvessem “como atores dotados de poder, capazes de realizar acordos transnacionais e de assumir a responsabilidade por uma rede transnacional cada vez mais coesa de organizações, conferências e práticas.” Só com esse tipo de agentes globais, capazes de exercer um contrapeso político à expansão global de mercados, segundo ele, é que a ONU “poderia encontrar uma base para a implementação de programas e de diretrizes de alto nível” (BORRADORI, 2004:52).
Portanto, concordo com o Sr. quando afirma que Habermas insiste em uma forma de "controle da agenda política mundial por parte da opinião pública internacional mais do que nos complicados mecanismos de participação institucionalizada, existentes nacionalmente, elevados ao nível global".
A propósito, recentemente publiquei um artigo em co-autoria com o professor Álvaro em que analisamos a questão do Terrorismo e resvalamos no assunto tratado no seu texto. Lá também há relatos da posição de Derrida sobre o assunto. Caso tenha curiosidade, está em (CRUZ;DUARTE, 2009:37-78), no livro Constituição e Processo: a resposta do constitucionalismo à banalizaçãodo terror, publicado pela DelRey.
Abs.,
Bernardo Duarte
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