As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal sobre o caso “Cesare Battisti” mostram como é difícil angariar consenso numa sociedade pluralista. Elas desagradaram a gregos e troianos, aos defensores e aos acusadores de Cesare, por mais que a Itália a tenha, de público, aplaudido. Entretanto, o Tribunal, a meu ver, errou duas vezes e acertou uma.
Errou ao denominar comuns os crimes praticados por Battisti. Por mais que reprovemos atos de violência e os delitos de sangue, não se pode deixar de avaliar o contexto em que ocorreram e o nítido objetivo de desestabilizar o regime italiano. Eram tempos de desespero de uma esquerda que premonizava o desfecho de seu ideal de jutiça.
Os crimes políticos, reiteradamente assim definidos, impedem a extradição (art. 5º, LII). Curiosamente, o ministro Gilmar Mendes reconheceu esse ambiente e o dolo do autor, mas preferiu uma qualificação escorregadia: crime relativamente político. Noves fora o subjetivismo, a decisão contrariou julgamentos anteriores do Tribunal.
Equivocou-se uma segunda vez, ao rever a concessão de refúgio. Trata-se de ato de natureza diplomática, situado no âmbito da política externa brasileira e, portanto, de atribuição privativa do presidente da República e de seus ministros (art. 84, VI, VIII, XIX e XX, CRFB). E mais (queiram o não): de caráter humanitário.
O artigo 4º da Constituição nem a Lei n. 9474/1997 autorizam o seu controle judicial. Mas o Tribunal pensou diferente e anulou o ato do ministro da Justiça. De novo, desdisse decisões tomadas há pouco tempo pelo próprio colegiado.
Que haveria de diferente no caso Cesare para exigir esse desapego aos precedentes? A pressão italiana? O novo ativismo da Corte? A falibilidade humana? Talvez nunca venhamos a saber.
Mas o Tribunal acertou ao afirmar que o ato final de extradição cabe, de maneira discricionária, ao presidente da República.
Os ministros Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie se basearam no artigo constitucional 102, I, g, para afirmar que caberia ao STF essa tarefa. Peluso, que foi o relator, achava incoerente que fosse outra a interpretação: "A Suprema Corte se ocupa de um tema para depois dizer não, nós estávamos brincando, se trata de um rematado absurdo". Gilmar, por sua vez, afirmou com voz solene “o Supremo não é órgão de consulta".
Porém, ao contrário do que defenderam e como em outras tantas competências (basta lembrar a representação interventiva do arts. 34, VII e 36, III), a decisão do Tribunal não passa de um ato-condição para exercício de um ato final num processo administrativo, político e judicial complexo. Ela não o esgota.
Quando a Corte julga casos de extradição, apenas declara se a pessoa é ou não extraditável. Em caso afirmativo, cabe ao presidente da República, segundo a conveniência e oportunidade política, promover o ato. Aqui e no resto do mundo.
O ministro Ayres Britto que havia manifestado voto contra o refúgio deu-se conta do disparate: a competência de manter as relações internacionais é do presidente e não do Supremo. Os atos extradicionais, ele disse, "começam e acabam no Executivo". Poderia, pela mesma razão, ter pensado diferente no caso de refúgio.
O presidente da República tem diante de si um problema político. Desagradará o governo italiano e alguns ministros do STF se não conceder a extradição de Battisti. Se resolver enfrentar o duplo descontentamento, encontrará fundamento jurídico, mesmo que dominado por uma pré-compreensão e ideologia, mas que interpretação do direito se isenta dessa contribuição incomôda?
Do ponto de vista constitucional, sua decisão, já dissemos, é discricionária: é ele quem decide livremente se entrega ou não Battisti. Quanto ao direito internacional, poderá basear-se no artigo 3º do tratado de extradição firmado entre o Brasil e a Itália na cidade de Roma em 1989, e ratificado pelo Congresso em 1993.
A alínea f do tratado admite a recusa de extradição "se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados".
Com a palavra (e a responsabilidade) o presidente
Um comentário:
É exatamente isto que tenho falado: quais os limites para atuação do Poder Judiciário?
Os riscos para a democracia (em termos gerais) são imensos se não soubermos delimitar os limites de atuação do Judiciário, pois, aí, ao invés de convivermos com a democracia representativa (a do povo mesmo!), mesmo com suas crises, teremos que viver sob uma autocracia judiciária. E, neste caso, o que é pior: eles são vitalícios!!
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