Por razões de estilo e hábito, mas também por lealdade e com o respeito devido, quero deixar claro que não só duvido de sua existência como o acho, empregando mal as palavras, um manipulador de emoções e sentimentos. Isso para não cair na vala comum dos que afirmam que o senhor é fiel cavaleiro do comércio e nada mais.
Superadas essas preliminares (e afirmo a contragosto como o faço todo ano, por simples apego ao princípio da eventualidade ou como disse, aos costumes, para não me acusarem de ter perdido alguma aula de prática jurídica, mas rogando, desde já, antecipadas desculpas), gostaria de ir bem ao fundo do fundo, ao mérito de meu pedido, o que, verdadeiramente, importa. Todo o resto é protocolar.
Pois bem, como, parece, a crise econômica já passou ou, pelo menos, deu uma trégua, animei-me a fazer não um, como de praxe, mas cinco pedidos, e não para mim, como sempre faço, mas para todos os seres humanos, agora, imaginados, como sempre deveriam ter sido, iguais, independente da origem, etnia, nacionalidade, gênero, cor, orientação religiosa, política, sexual, artística (incluindo sertaneja e axé) ou futebolística (cruzeirenses e saopaulinos inclusivamente).
Gostaria de pedir que não mais existisse, nunca mais mesmo, fome, guerra, pobreza, opressão nem violência. Preferi não postular o fim da peste e de seu triunfo, a morte, por razões que esclareço depois, embora tamanha tenha sido a tentação que, como este, espero, não é o último natal de minha vida, deixo para solicitá-lo, quem sabe, o ano que vem.
Muitos já pediram, eu sei. E o senhor não é Deus, eu sei. Mas fico, às vezes, a pensar que se o senhor existisse, se Deus existisse, por que haveria essas pedras em nosso caminho? Sei bem que são criações humanas e não divinas. Aliás, foi isso que me deu coragem para pedir o que peço e abrir mão do que poderia ser o impossível ou de algo que o colocasse em contendas com o Todo Poderoso.
Digo isso me referindo à criação d’Ele em sua completude: a natureza e tudo que ela contém, suas leis, seus bichos, suas plantas, suas indecifráveis criaturas, excetuando o homem, a sua, por pressuposto, mais sublime expressão. Embora tenha de externar, e peço absoluto sigilo quanto a isso, o meu desapontamento com algumas manifestações desse poder originário absoluto e absurdamente discricionário.
Pode ser que essa minha impressão seja, de fato, mas não de direito, fruto da ignorância das grandes leis celestiais, da Constituição do universo e de tudo que existe, existiu ou existirá, ainda que apenas em pensamento. Penitencio-me, de pronto, se for – e deve ser – essa a razão do meu equívoco.
Ou de qualquer outra que se impute a esta ingênua, incrédula e ingrata criatura e suas venalidades, com ou sem direito de defesa, ainda que insidiosamente eu o reclame. Feitas, portanto, todas as precauções, mesmo assim, eu lhe confidencio para demonstrar a pureza e desinteresse do meu requerimento.
Ver, por exemplo, meu velho (me permite?), no “Animal Planet” a sagacidade do leão para atacar as suas presas e a organização das hienas para garantir os restos não é muito animador, confesso. É animalesco. A fome precisa ser combatida com a morte em campo de batalha. E como sofrem as leopardas viúvas ou seus filhotes desgarrados.
O olhar terrificado do cervo (com o perdão desse termo usado apenas para evitar duplo sentido ou gerar outro mais próprio) encurralado na premonição da morte é oprimente, desigual, insano, com o perdão, de novo, dos excessos verbais. Mas, me permita outra vez, meu velho, é, pelo menos, curioso ouvir alguém dizer que a lei da natureza é intrinsecamente justa.
Certamente o senhor já o ouviu uma centena de vezes e nem sei se concorda com isso. Provavelmente, certamente, que sim. Tenho que confessar, entretanto, que a mim me causa indignação, mas sou frágil, talvez pusilânime ou, como disse, simplesmente ignorante. Por isso, não lhe peço que, sem fechar o canal de tevê (que, por sinal, é fechado), mude assim a natureza das coisas.
Tampouco vou desejar o fim das dúvidas metafísicas: de onde viemos, para onde vamos, quem somos (por que não estamos com esta e não com aquela, coisas assim mais profundas). Por isso, estou convicto da viabilidade do que lhe peço. E sei que, por suas ligações com o Onipotente, sem quebrar o vínculo da hierarquia nem os mistérios da fé, quando acordar no dia 25 de dezembro, todas essas cinco chagas estarão curadas, minha súplica, enfim, atendida.
Se pareço um menino mimado, me perdoa mais uma vez. É que sei, bem sei que essas mazelas, exatamente por não serem tipicamente naturais, podem ser superadas por uma simples mudança de atitude do ser humano perante o mundo e principalmente perante ele mesmo. Talvez seja preciso uma proteína a mais, um peptídeo a menos, um código genético recomposto, uma falha de sistema ou caráter sanada, uma vírgula, um ponto. Nada que ponha em risco a obra do Criador.
Embora possa se imiscuir no ramo da bioquímica ou da genética, sabe-se lá se também na gramática divinal ou apenas linguística, meu caro, caríssimo Papai Noel, tudo se resume na verdade à recuperação de uma palavra antiga e até passada, brega, eu quero dizer: amor.
Pois, então, que neste natal o amor disperse todos os seus contrários, pais bastardos da fome, da guerra, da opressão, da pobreza e da violência. Será que é pedir demais?
É, nesses termos, que pede respeitosamente e espera deferimento do que assim pede esta pobre e ignara criatura. A assinatura segue na imaginação para sua autenticidade.