sábado, 15 de agosto de 2009

O direito a uma morte doce.

A eutanásia ou, etimologicamente, "boa", "suave", "doce" ou "digna morte", continua a dividir opiniões. Para alguns, é uma aberração às leis de Deus e da natureza, um atentado à moralidade, uma disposição de um bem indisponível e sagrado. Para outros, é a realização da autonomia e dignidade humanas. Ninguém é obrigado a continuar a viver se conscientemente deseja morrer ou, no caso de inconsciência, se o diagnóstico médico é de irreversibilidade e os parentes decidirem abreviar a dor. Em muitos casos, é exigência humanitária em vista do sofrimento extremo.
As situações definidas como eutanásia são distintas e envolvem uma sistema de classificação, desenvolvido desde o seminal estudo de Franz Neukamp, que toma a ação do agente ou a vontade do paciente como critérios. De acordo com a ação, podemos falar em "eutanásia ativa", se há a intenção do agente de provocar a morte para fins misericordiosos e sem sofrimento do paciente.
A "eutanásia passiva" ou "indireta" é a que se verifica quando deliberadamente não se inicia um tratamento ou se interrompe o que esteja em andamento diante de um quadro terminal e sempre com o objetivo de minorar a dor. Há ainda a "eutanásia de duplo efeito" com a aceleração da morte em decorrência indireta das intervenções médicas executadas com o intuito de reduzir o sofrimento de um doente terminal.
Em relação ao querer do paciente, diz-se "eutanásia voluntária" quando há livre manifestação nesse sentido. Se a ação se der contra a sua vontade expressa, diz-se "eutanásia involuntária", para diferenciar dos casos de "eutanásia não voluntária", quando não há registros dessa vontade em um ou noutro sentido. A combinarmos os critérios, poderemos ter uma eutanásia ativa e voluntária ou outra passiva voluntária ou involuntária.
Em geral, essas duas últimas espécies são denominadas de "suicídio assistido". Há uma tendência a se admitir a assistência à morte, mas não a intervenção ativa dos médicos, embora, para muita gente, a distinção não tenha moralmente relevo. A Holanda, a propósito, é um dos poucos países onde não há uma distinção legal entre as duas modalidades de abreviação da morte.
Com registros na Antiguidade (os estóicos, por exemplo, diziam que era decorrência da liberdade do homem a sua escolha entre a vida e a morte), a prática só foi legalizada com o "homicídio piedoso", previsto pelo art. 37 do Código Penal do Uruguai em 1934, e, tempos depois, pela Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais dos Territórios do Norte da Austrália e pela Lei do suicídio assistido do Estado norte-americano do Oregon (The Death with Dignity Act), já em 1995 e 1997, respectivamente. Uma lei do gênero, intitulada "Death with Dignity Act"[Lei sobre Morte com Dignidade], foi aprovada no Estado de Washington em 4 de novembro de 2008, por meio de referendo popular.
Seus dois maiores reveses se deram em 1987, quando a Associação Mundial de Medicina aprovou a Declaração de Madrid, contrária à prática. E, em 1980, com a Declaração do Vaticano sobre Eutanásia, embora haja neste último caso apoio à interrupção de tratamento considerado inútil, ainda que venha a causar a morte do paciente:
"Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo" .
Nos Territórios do Norte da Austrália, a Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais, que autorizava a eutanásia ativa, foi revogada pelo Parlamento federal em março de 1997 contra um sólido apoio da opinião pública: 74% dos australianos eram favoráveis a ela. Mesmo em seu curto tempo de vida, a lei possibilitou a Robert Dent e outros três pacientes receberem autorização para suspender o tratamento médico que os mantinha vivo.
Na Holanda, a prática era tolerada, mas somente foi legalizada em 1o. de Abril de 2002. Também na Suíça, em Luxemburgo, na Bélgica e na Tailândia, ela é permitida, embora os registros, não oficiais, obviamente, de sua ocorrência em unidades de terapia intensiva sejam quase uma constante nos países ocidentais e mesmo orientais. Mais recentemente, outro Estado da Austrália voltou a validar o procedimento médico pouco depois do que, em parte, fizera a Grã-Bretanha.
Na Terra da Rainha, a história remonta à primeira metade do século XX com a iniciativa do Dr. Millar de legalização da eutanásia voluntária, que foi discutida por cinco anos até ser rejeitada pela Câmara dos Lordes em 1936. Desde então a eutanásia e o suicídio assistidos passaram a ser considerados crimes.
Mas foram os próprios Lordes que, na última sessão antes de suas funções como tribunal de apelação (Law Lords) serem transferidas para uma Suprema Corte, em vista da reforma constitucional de 2005, atenderam a um pedido de Debbie Purdy, portadora de esclerose múltipla em fase terminal, para que seu marido não seja acusado de auxiliar um suicida no caso de levá-la à Suíça para submeter-se ao procedimento médico.
Mais que atender à demanda, os Law Lords reconheceram que o tema é lacunoso na legislação britânica, o que pode significar um reexame do assunto. Na verdade, não havia registros de condenações ou mesmo de ações movidas contra as pessoas que transportavam os doentes terminais para a Suíça, algo, até certo ponto, recorrente na Grã-Bretanha. Segundo Debbie, a decisão lhe trouxe a vida de volta:

Pois bem, na esteira desse precedente britânico, a Suprema Corte do Estado da Austrália Ocidental decidiu, em 14/8/2009, que os responsáveis pelo asilo, onde Christian Rossiter vive, poderão parar de alimentá-lo, não sendo, por isso, acusados de homicídio ou de auxílio ao suicídio. De acordo com a legislação em vigor, os pacientes podem recusar um tratamento que seja indispensável à vida, mas quem ajudar de algum modo o suicida a consumar o ato responde por crime punido com pena privativa de liberdade.

O presidente da Corte considerou que o caso não era propriamente de eutanásia: "Nem é sobre tratamentos médicos letais prescritos a pacientes que desejam morrer. Nem é sobre o direito de viver ou mesmo o direito de morrer. Nem foi chamada a corte para determinar o melhor curso da ação [médica] em função dos interesses do paciente. A única questão que se apresenta para decisão neste caso concerne à obrigação legal, sob o direito da Austrália Ocidental, de um provedor de serviços médicos, que assumiu a responsabilidade de cuidar de um paciente mentalmente capaz, diante da afirmação clara e inequívoca deste paciente de não querer mais receber os serviços médicos que, se interrompidos, causarão a ele inevitavelmente o óbito."

Rossiter é tetraplégico e havia feito o pedido de abreviação da morte por não poder realizar as "funções humanas mais elementares". Não pode, por exemplo, enxugar as lágrimas do próprio rosto, choradas pelo desespero de sua condição e pela dor de não mover a realidade um ínfimo centímetro na direção de seus sonhos e necessidades. Sua mente é tão lúcida e brilhante que o fundador da Exit International, organização de defesa da eutanásia voluntária, chegou a dizer: "Eu não sei se muitas pessoas desejarão morrer se estiverem nessas condições. Mas, para as pessoas que o quiserem, é uma decisão muito importante [a ser respeitada]".

Além de andar numa cadeira de rodas e respirar por meio de um tubo traqueostômico, são os enfermeiros quem o alimenta e hidrata por meio de outro tubo ligado ao estômago. Em entrevistas que concedeu à imprensa local, disse-se um alpinista e aventureiro aprisionado num corpo inútil, a morte não o amedronta, só o desespero e a dor que ora sente.

A Corte, embora não falasse expressamente na proteção à "morte digna", fez menção ao direito que tem o cidadão australiano a recusar conscientemente um tratamento médico, ainda que indispensável à sobrevivência, bem como o respeito à autonomia ou autodeterminação, inclusive nos domínios da própria vida.

O último desejo de Christian é, agora, receber analgésicos e ver televisão em paz antes do dormir: "I'm happy that I won my right to die" [Estou feliz por ter conseguido meu direito de morrer].

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