sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Sumiço de Belchior

Quando Tímon desapareceu de Atenas deixando poucos vestígios, abandonando a vida respeitável e confortável que levava, poucos souberam o motivo.
Tímon fora à falência, consumindo todo o seu patrimônio em banquetes e presentes para os amigos. Não encontrando nenhum apoio, se afasta de tudo e de todos e vai morar numa cabana bem longe da cidade.
Logo, as notícias sobre suas desgraças ganham o mundo. Não pude deixar de lembrar de Tímon, protagonista da peça Tímon de Atenas, de Shakespeare, depois que acompanhei, pela Imprensa, as notícias do sumiço do cantor e compositor cearense, Belchior.
Belchior consagrou-se, nos anos 70, como um dos grandes compositores brasileiros. Juntamente com outros cearenses, que ficaram conhecidos como “pessoal do ceará”, sendo os mais notáveis, Ednardo e Fagner – curiosamente nenhum deles utiliza sobrenome – inscreveram o talento nordestino na Música Popular Brasileira, a “elitizada” MPB.
Num período em que Chico Buarque de Holanda era chamado de unanimidade nacional, com suas veneradas músicas de protesto, e Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam consagrados após a Tropicália, aparece um cearense dizendo que é: “apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo interior”.
Naquele momento surge um compositor falando de sua terra com uma pitada de literatura clássica, com álbuns denominados A Divina Comédia Humana e, mais tarde, com O Elogio da Loucura, conquistando o Brasil. Belchior, naquele final dos anos setenta, chegou a ser festejado, e com razão, como o maior compositor do país.
Ele e Fagner foram os primeiros compositores nordestinos a “estourarem” nacionalmente com músicas de MPB. Gil e Caetano são baianos, e a Bahia quando se trata de música ultrapassa o conceito de região. Permanecer no topo e criar a vida toda é algo impossível pra qualquer artista.
O único da geração de Belchior, a turma que passou dos sessenta anos, que continua criando e em grande atividade é Caetano Veloso. A criação é quase como um parto. Poucos sabem, mas Belchior já havia “sumido” trinta anos antes, logo depois de se tornar um “superstar”, e reaparecendo irreconhecível com uma longa barba e um repertório completamente mudado.
Mas Belchior, diferente de quase todos os “sumidos”, segundo me disse ele em 2002, nunca deixou de ler - como fazia desde os quinzes anos - um livro por semana. Sua vida é impregnada de literatura. Hoje, Belchior está traduzindo e ilustrando A Divina Comédia, de Dante.
As especulações tolas e fúteis de grande parte da Imprensa, de que Belchior estava montando um golpe publicitário, porque estaria esquecido, para depois surgir dando entrevistas em programas de auditório, denota burrice. Belchior está noutro patamar.
Tímon estava brigado com o mundo, Belchior não, ele quer viver sua alucinação, longe de gente comum, dos frutos da aldeia global de que ele se recusa a participar. Ele segue o conselho de Apemanto a Tímon: “A melhor situação, sem contentamento, é mais desgraçada e miserável do que a mais baixa situação com contentamento”.
Os gregos, que sabiam de tudo, já tinham afirmado: “uma vida que não é reexaminada não merece ser vivida”. Belchior está louco de razão, ele está reexaminando a sua. Os broncos não sabem o que é isso. Deixemo-lo em paz.
Artigo dedicado a Luiz Moreira
Theófilo Silva, Presidente Sociedade Shakespeare de Brasília e colaborador da Rádio do Moreno.

domingo, 25 de outubro de 2009

Sobre Nerds, Mulheres e Sexo

Uma pesquisa recente confirma algo que os nerds só começam a entender com o passar do tempo (se entenderem). Quase sempre mofinos, raquíticos e feios, na escola, são rejeitados. Crescem e ganham dinheiro, alguma segurança e as mulheres que os enjeitaram na escola. Ou suas equivalentes remoçadas.
A atração sexual, pelo menos o impulso e aquela da adolescência docemente inconsequente (quase pleonasmo), é determinada por um padrão de comportamento adquirido, darwiniano, portanto. Os hormônios, expressão desse processo, dominam suas regras.
Quando as mulheres estão ovulando (será que as adolescentes estão sempre?), tendem a preferir as figuras masculinas que estão no arquétipo social dos machões, fortes e encrenqueiros, nada familiares. Tudo que indique, inconscientemente, vida saudável e genes capazes de vencer a luta pela sobrevivência. Querem a proteção da força e da genética.
No período que não se encontram a descarregar seus óvulos, esse ímpeto diminui e até muda de orientação. Tendem a ver a beleza escondida por detrás de óculos e dos ossos. A alma e o caráter, a inteligência e o conhecimento parecem indicar para esse cérebro bioquímico que seus titulares serão bons pais às crias que elas gerarem. Preferem então a proteção do carinho e da segurança.
Esse traço talvez explique a tormentoso conflito ancestral dos homens de que "a maternidade é certa, enquanto a paternidade é presunção". Ou na pilhéria desconsertante: "pai é quem cria ou registra". A dúvida gerou a divisão sexual do trabalho com mecanismos de controle da sexualidade feminina.
Entre outras razões, nobres ou de pura segurança da família e dos patrimônios, justificam os incisos I e II do artigo 1.597 do Código Civil brasileiro. E que tem reproduções na maioria dos sistemas jurídicos. Foi a forma achada pelos homens para compensar a submissão da mulher a seus instintos.
A ciência pode mudar esse quadro. Pelos menos em parte. A filandesa Virpi Lummaa e a francesa Alexandra Alvergne publicaram as conclusões de sua pesquisa no artigo "Does the contraceptive pill alter mate choice in humans?" [A pílula contraceptiva altera a escolha de parceiro nos humanos?], que confirmam as transformações dos nerds e podem diminuir as desconfianças masculinas.
As pílulas anticoncepcionais, como impedem a ovulação, fazem com que a alma seja mais apreciada pelas mulheres do que os músculos. Para ser mais exato, a pesquisa também revela que os homens são mais atraídos pelas mulheres no período ovulatório que em outros dias do mês.
Podemos buscar nessa atitude masculina o instinto Don Juan que, entre poesias e carinhos, visa realmente a espalhar seus genes nas fêmeas que se encontram no ponto certo para a reprodução.
A pílula, todavia, arrefece ou confunde seus ânimos. De duas uma. Passam a atirar para todos os lados ou monogamizam-se. As pesquisadoras não responderam ao dilema.
O estudo é interessante, mas é também reducionista. Será que as mulheres mudam efetivamente de companheiros com o passar dos dias do mês, como se fossem meros corpos biológicos? Achemos a pergunta reacionária, mas a cultura tem essa força de contenção.
Talvez as mulheres se sintam atraídas por outros parceiros ou parceiras, por determinismo biológico ou carências de afeto, mas há um padrão ético, resultante das leituras feitas da tensão psicológica e bioquímica pela cultura com todos os ingredientes de divisão do trabalho sexual, que as impedem de levar adiante o seu projeto. Pelas mesmas razões éticas e culturais, o casanovismo não é tão reprovado nos homens.
Como isso, entretanto, interfere no sequenciamento das operações hormonais ou é por elas moldado é algo ainda sem respostas convincentes para acalmar principalmente os ânimos masculinos. Eles sabem, alguns por experiência própria, que a pílula às vezes falha. As mulheres mais ainda. Entretanto, mais adaptadas, tocam as suas vidas.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Habermas e a tese de um Estado mundial

A proposta de Jürgen Habermas para a organização internacional dos países que assegure os direitos humanos se define como alternativa à dicotomia kantiana entre um federalismo de Estados livres e uma república mundial. Ela defende basicamente uma organização em forma de redes, em que se preservam as autonomias dos Estados atuais, associadas a um grau de comprometimento cooperativo de todos (Estados, organismos regionais e internacionais) com alguns valores mínimos que comporiam o "cosmopolitismo moral".
Tais valores seriam nada mais nada menos do que os direitos humanos ou projeções jurídicas e políticas da inclusividade, do individualismo e da igualdade. Institucionalmente, no lugar de um Estado mundial ou de formas similares, teríamos um "sistema global de múltiplos níveis". Essa é a engenharia proposta por ele e que angariou críticos de várias frentes (WENDT, Alexander. "Why a World State is Inevitable". European Journal of International Relations, v. 9, n. 4, 2003, p. 491–542).
É preciso destacar, primeiramente, que, como vemos no breve resumo feito acima, a teoria de direitos humanos de Habermas não se contenta com um cosmopolismo puramente moral, como sucede com Charles R. Beitz ("Cosmopolitan liberalism and the states system". In BROWN, Chris (ed). Political restructuring in Europe: ethical perspectives. London; York: Routledge. 1994, p. 119 et seq, 124), mas requer uma estrutura política e jurídica de institucionalização. Significa dizer que tais direitos são mais do que simples reivindicações morais, são também pretensões políticas e jurídicas que, em síntese, protegem a liberdade individual de escolha da concepção de felicidade ou vida boa.
Reivindicações, é bom que se repita, perante uma estrutura organizacional, seja interna, seja internacionalmente. Eis a razão de se dizer que o cosmopolitismo habermasiano é também institucional. Mas isso não significa que, para efetividade desses direitos, tenhamos que reproduzir no nível mundial as estruturas do Estado-nação.
Em primeiro lugar, porque a própria noção de soberania nacional já teria sido bastante relativizada pelos processos de globalização, acelerado nos últimos cinquenta anos. Os insistentes deslocamentos de pessoas, as ampliadas dependências econômicas e, até certo ponto, regulatórias entre os Estados, as redes institucionais formadas por eles, bilateral ou multilateralmente, o desenvolvimento quase autônomo dos mercados financeiros globais e de uma esfera pública transfronteira, ligados ao fortalecimento dos institutos do direito internacional, embaçaram as fronteiras dos poderes tradicionais dos Estados nacionais.
Depois e principalmente, a ênfase deve ser dada aos "cidadãos livres e iguais do mundo": os indivíduos devem ter seus direitos respeitados, independente da nacionalidade ou etnia, por toda comunidade das nações. Para tanto, não seria preciso a criação de um superestado ou a reprodução internacional de suas instituições nacionais. Teríamos, diferentemente, um sistema multinível de governança, integrado por Estados democráticos em nível nacional, por organismos por eles formados em nível regional e por uma organização mundial com poderes restritos à manutenção da paz e a garantia dos direitos humanos. (HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other. Studies in Political Theory. Ciaran Cronin; Pablo de Greiff. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 1996, p. 180).
A pergunta óbvia que se impõe é: esse arranjo minimalista não compromete o princípio da soberania popular e a própria democracia? Não necessariamente, de acordo com Habermas. A soberania popular deve ser considerada em sentido processual e não substantivo. Não são sujeitos deliberantes que a definem, quer diretamente, como defendem os republicanistas e algumas versões da democracia deliberativa, quer indiretamente, por seus representantes eleitos, segundo os liberais, mas processos anônimos de comunicação, orientados pelos direitos humanos, que se propõem a adotar as decisões vinculantes (p. 251). No plano global, a legitimidade das decisões decorreria primariamente das “formas organizacionais de um sistema internacional de negociação, que já existe hoje em outras arenas políticas.”(p. 109).
Ronald Tinnevelt e Thomas Mertens, entrentanto, veem profunda contradição entre essa proposta de Habermas e sua teoria discursiva do direito e da democracia, que pressupõe a autodeterminação entre esfera pública (da autonomia política) e esfera privada (da autonomia privada). Essa implicação é, de certa maneira, negada, quando Habermas, além de refutar paralelismo entre a teoria do contrato social e o desenvolvimento de um Estado mundial, defendido por alguns, acusa a impossibilidade de transpor para um plano global a existência de instrumentos participativos e órgãos de deliberação tipicamente estatais (The World State: A Forbidding Nightmare of Tyranny? Habermas on the Institutional Implications of Moral Cosmopolitanism. German Law Journal, v. 10, n. 1, January 2009, p. 63-80).
A razão? Não há política sem alguma forma de exclusão. Ou, por outra forma dita, a autodeterminação e a identidade políticas, que definem uma comunidade política concreta, implicam a distinção entre cidadãos e não-membros da comunidade. No nível global, não existe bem definida a identidade, o "nós" (self) do autogoverno, nem poderá ser desenvolvida algum dia, porque a autodeterminação política pressupõe uma delimitação social e territorial.(Jürgen Habermas. The Postnational Constellation: Political Essays. Cambridge: MIT Press 2001, p. 71,107).
Notemos que essa afirmação contradiz o princípio da reciprocidade, caro à teoria habermasiana. Que diz o princípio? Os afetados por uma decisão têm o direito de dela participar adequadamente. Se é possível a defesa de um sistema multinível sem Estado com o propósito de proteção de direitos humanos, parece previsível que as decisões tomadas por esse sistema, inclusive no plano global, requeiram participação dos afetados, especialmente se envolverem conflitos de direitos, o que não é raro de acontecer. Como proceder com a organização internacional rarefeita proposta por Habermas, em tais hipóteses? Habermas ainda não disse.
Essas críticas revelam a incompatibilidade do sistema multinível habermasiano e seu modelo dual de democracia. Como sabemos, a política democrática, segundo o filósofo alemão, é resultado de um duplo processo de formação da opinião e vontade. Um desenvolvido em espaços informais (esfera público-política integrada por grupos de interesses, academia, associações civis, por exemplo); outro, por meio de órgãos e ritos constitucionalmente institucionalizados (parlamento, executivo, sistema de justiça, processo legislativo e processo judicial) (The Inclusion, p. 373).
Pois bem, segundo Tinnevelt e Mertens, Habermas se contenta com o modelo liberal de democracia no plano internacional. Uma organização mundial de competências mínimas acaba por estabelecer uma prioridade dos direitos sobre a democracia. O resgate da equipotência entre direitos e democracia, entre liberdades e participação política, apenas se daria se Habermas tivesse de assumir a possibilidade, no mínimo, de uma república mundial.
Talvez seja exagerada a conclusão dos dois autores. Na verdade, as formas institucionalizadas de participação dão lugar à esfera pública informal. Habermas acredita nas possibilidades de controle da agenda política mundial por parte da opinião pública internacional mais do que nos complicados mecanismos de participação institucionalizada, existentes nacionalmente, elevados ao nível global. Um grande Estado mundial traria mais riscos do que vantagens.
De toda sorte, a solução alvitrada por Habermas reduz o poder democrático na dualidade constitutiva por ele defendida e, de quebra, compromete a tese seminal de cooriginalidade entre autonomia pública e autonomia privada.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

São Horas de Ser Honesto

“Que horas são senhor?” E o transeunte responde: “São horas de ser honesto”. Esse pequeno diálogo ocorre entre dois personagens Shakespearianos durante um encontro casual em plena rua. Na realidade, um está dando bom dia para o outro. A questão é que Shakespeare nunca descreve os acontecimentos de maneira direta, simplista. Ele prefere falar por metáforas.
Esse “bom dia” inusitado soa como uma bofetada em nossas consciências e nos convida a uma reflexão sobre a ética e a moral. Também essa é a pergunta que a grande maioria do povo brasileiro se faz todos os dias: onde estão os homens honestos do Brasil?
Depois do escândalo do Senado, em que foram comprovadas fraudes terríveis com provas irrefutáveis e ninguém foi punido - pelo contrário, os acusados receberam solidariedade - a amoralidade foi oficialmente instalada no Brasil. Uma espécie de licença de improbidade foi chancelada. Os claramente culpados, hoje, acusam a Imprensa de tentar desestabilizar as instituições democráticas e os envolvidos no esquema que não detinham mandato popular já estão buscando um.
Todos os dias uma fraude aparece. As denúncias que nos chegam pela Imprensa, frutos do trabalho do Ministério Público, crescem em grande profusão e são todas muito bem fundamentadas, eivadas de provas. As ONGS internacionais de Direitos Humanos têm se debruçado sobre o problema e no ranking das nações mais corruptas do mundo o Brasil ocupa “honrosa” colocação, ficando vergonhosamente ao lado dos pobres países da África. Por quê?
Não existe honra nos trópicos? A lisura é um privilégio dos países frios? Da Escandinávia, Inglaterra, Austrália, Canadá? O que acontece com o Brasil? É por que somos um país de mestiços colonizados por Portugueses, um dos primos pobres da Europa, como dizem por aí? Não, claro que não. A herança católico-portuguesa é, de fato, pesada, porém, na verdade, todas essas teses sobre clima, etnia, raça, trópicos caíram por terra, não valem mais.
As teses caem, mas a corrupção não acaba, diz o povo; não arrefece, não para de crescer e é como uma peste, se alastra, destruindo o tecido do Estado. E como não há punição para os culpados, ocorre uma inversão de valores. Os homens de bem passam a ser vistos como tolos e covardes e os corruptos como bem sucedidos e corajosos.
E como todo vício, a corrupção nunca é moderada, tudo é estratosférico, exagerado. Os valores surrupiados são na casa dos milhões. No entanto, ninguém é preso ou condenado. Pelo contrário, os defensores da sociedade são criticados por suas ações, sendo chamados de apressados, partidários, irresponsáveis, inconsequentes e outros adjetivos. E o pior, essas críticas partem do próprio presidente do Supremo Tribunal Federal. Como pode ser isso?
O grande problema do Brasil está localizado em suas cortes superiores que lavaram as mãos diante da iniqüidade. Ninguém está aí pra nada. A justiça está subordinada a política. Se não há punição, por que não delinqüir? A nós, cabe se lastimar e sofrer a dor. Aos corruptos, sorrir e gastar dinheiro. Mas, como disse Samuel Johnson, chamado carinhosamente pelos ingleses de Dr. Johnson: “a mente só repousa na solidez da verdade”. Enquanto houver inquietude há esperança! Os homens de bem logo aparecerão!
Postador por Theófilo Silva, Presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília e Colaborador da Rádio do Moreno

sábado, 17 de outubro de 2009

Transexual consegue alteração de nome e gênero, sem registro da decisão judicial na certidão

De acordo com noticiário do Superior Tribunal de Justiça, um transexual ingressou, no Tribunal, com pedido para retificação de seus registros civis após cirurgia de mudança de sexo. Em seus fundamentos, ele afirmou que crescera e se desenvolvera como mulher, com hábitos, reações e aspectos físicos tipicamente femininos. Submeteu-se a tratamento multidisciplinar que diagnosticou o transexualismo. Passou pela cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Alega que seus documentos lhe provocam grandes transtornos, já que não condizem com sua atual aparência, que é completamente feminina.
A defesa do transexual identificou julgamentos no Tribunal de Justiça do Amapá, do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, nos quais questões idênticas foram resolvidas de forma diferente do tratamento dado a ele pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesses estados, foi considerada possível a alteração e retificação do assento de nascimento do transexual submetido à cirurgia de mudança de sexo. Em primeira instância, o transexual havia obtido autorização para a mudança de nome e designação de sexo, mas o Ministério Público estadual apelou ao TJSP, que reformou o entendimento, negando a alteração. O argumento foi de que “a afirmação dos sexos (masculino e feminino) não diz com a aparência, mas com a realidade espelhada no nascimento, que não pode ser alterada artificialmente”.
O STJ determinou a alteração do pré-nome e da designação de sexo de um transexual de São Paulo que realizou cirurgia de mudança de sexo. Ele não havia conseguido a mudança no registro junto à Justiça paulista e recorreu ao Tribunal Superior. A decisão da Terceira Turma do STJ é inédita porque garante que nova certidão civil seja feita sem que nela conste anotação sobre a decisão judicial.
O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários. A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias. Anteriormente, em 2007, a Terceira Turma analisou caso semelhante e concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil.
A cirurgia de transgenitalização foi incluída recentemente na lista de procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o Conselho Federal de Medicina reconhece o transexualismo como um transtorno de identidade sexual e a cirurgia como uma solução terapêutica. De acordo com a ministra relatora, se o Estado consente com a cirurgia, deve prover os meios necessários para que a pessoa tenha uma vida digna. Por isso, é preciso adequar o sexo jurídico ao aparente, isto é, à identidade, disse a ministra.
A ministra Nancy Andrighi destacou que, atualmente, a ciência não considera apenas o fator biológico como determinante do sexo. Existem outros elementos identificadores do sexo, como fatores psicológicos, culturais e familiares. Por isso, “a definição do gênero não pode ser limitada ao sexo aparente”, ponderou. Conforme a relatora, a tendência mundial é adequar juridicamente a realidade dessas pessoas. Ela citou casos dos tribunais alemães, portugueses e franceses, todos no sentido de permitir a alteração do registro. A decisão foi unânime.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Flaubert e Machado são fundamentos da decisão: "solene corno" não tem reparo

Uma relação extraconjugal da esposa de um policial federal deu pano para manga. Foram sete meses de paixão arrebatadora até o marido descobrir. Veio o salseiro. Brigou com a mulher e ameaçou o amante. Amante que nada aprendeu sobre as artes do amor, denunciou o caso à Corregedoria da Polícia Federal. Foi a publicidade que faltava: a notícia vazou e os colegas passaram a chamar o agente de "corno conformado". Foi demais.
Ajuizou ação indenizatória contra o traidor. Perdeu e ainda recebeu aulas de sexologia e literatura. Um pouco de psicologia. O nobiliárquico magistrado usou Capitu e Madame Bovary para justificar a conduta desleixada do marido, que tornou a relação tão fria quanto o zero absoluto e deixou a mulher com o sentimento de perda ou, pior, de desprezo. “Alguns homens, no início da ‘meia idade’, já não tão viris, o corpo não mais respondendo de imediato ao comando cerebral/hormonal e o hábito de querer a mulher ‘plugada’ 24hs, começam a descarregar sobre elas suas frustrações, apontando celulite, chamando-as de gordas (pecado mortal) e deixando-lhes toda a culpa pelo seu pobre desempenho sexual”, diz, na sentença, o juiz Paulo Mello Feijó.
as mulheres na fase pré-menopausa “desejam sexo com maior frequência, melhor qualidade e mais carinho – que não dure alguns minutos apenas”. Mulheres nessa situação, diz o magistrado, têm dois caminhos: ou se fecham deprimidas ou “buscam o prazer em outros olhos, outros braços, outros beijos (...) e traem de coração”. Nesses casos, o pensamento nada pode ser outro: “Meu marido não me quer, não me deseja, me acha uma ‘baranga’ - (azar dele!) mas o meu amante me olha com desejo, me quer - eu sou um bom violino, há que se ter um bom músico para me fazer mostrar toda a música que sou capaz de oferecer!!!!”
“Um dia o marido relapso descobre o que outro teve a sua mulher e quer matá-lo - ou seja, aquele que tirou sua dignidade de marido, de posseiro e o transformou num solene corno!”. “Portanto, ao réu também deve ser estendido (...) perdão, porque as provas nos autos demonstraram que o autor perdoou sua esposa e agora busca vingança contra o réu, que também é vítima de si mesmo juntamente com a esposa do autor.”
Como o adultério não é mais crime, aconselha a vítima de infidelidade a procurar um psiquiatra. E cita ainda a música Ninguém Tasca (O Gavião), de Pedrinho Rodrigues: "'A nega é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro'. É apenas a letra de um samba em que o pássaro que aprende a voar livremente não se adapta mais à gaiola".

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Direitos dos animais: crítica de Pondé

Luiz Felipe Pondé, em A Carne Ética, lança um olhar crítico sobre os ambientalistas. Leia e reflita. Se não puder ter acesso à íntegra do texto, preste atenção em algumas passagens da tese:
Os europeus, esses cidadãos tão evoluídos e preocupados com um mundo melhor, exigem de nós frigoríficos "humanistas". Mas quais são as duas vertentes do debate acerca do humanismo animal? De um lado do ringue os moderados, ONGs a favor do abate sem sofrimento, com formas confortáveis de transporte e abate (resumido na máxima "Por uma carne ética!"), e do outro lado, os seguidores radicais do filósofo Peter Singer, um utilitarista radical. Como todo utilitarista, ele identifica o "bem" com a minimização do sofrimento.
Segue ainda mais irônico e profundo:
Esses "radicais", parceiros de Singer, se autodenominam "abolicionistas" contra o "especismo". O que é "especismo"? É uma forma de racismo contra os animais. Especista é quem acha que os seres humanos têm mais direitos do que, digamos, camundongos, porcos e baratas. E os piolhos?
Por que essas pessoas "conscientes" não falam dos direitos das rúculas em continuarem, de forma singela, a fazer fotossíntese? Onde está a consciência deles quando torturam seres inocentes como as berinjelas, trituradas entre nossos dentes horrorosos? Não há dúvida de que há algo de monstruoso na humanidade, mas o que me espanta nesses "conscientes" é a cegueira para o fato de que a natureza não seja um mar dócil, mas sim um espaço de violência.
A humanidade tem algo de monstruoso porque ela é parte da natureza. Se dependêssemos desses "conscientes", não teríamos sobrevivido à seleção natural. Teríamos caído paralisados diante da necessidade de matar para sobreviver, por um lado, e pelo outro lado, da dor de consciência por aniquilar a esperança de pequenos antílopes que corriam livres e saltitantes pela savana africana.
Esses caras são uns bobos que nunca viraram gente grande, por isso eles gritam por aí "rats have rights". Gente grande sabe que a felicidade não faz parte dos planos da natureza. O que escolher? A carne ética ou a rúcula santa? Um dia vão sair correndo dando pauladas em quem não se converter à "Santa Alimentação".
Pois bem, digo eu outra vez, com quem está a razão?

Lado B: A tese do MST

Todos viram ou leram as reportagens sobre a destruição de um laranjal da empresa Cutrale feita por integrantes do MST. Os âncoras televisivos e os editorais jornalísticos demonstravam indignação com o fato. Até o presidente Lula chamou o ato de vandalismo. Pois não forme ainda sua idéia. Leia a entrevista que João Pedro Stedile concedeu à Folha nesta segunda-feira, 12/10/2009, destaca em trechos a seguir:
O fato de a área ser grilada, confirmado pelo Incra, não é algo secundário. Esse é o fato. Um dos princípios que o MST respeita é a autonomia das famílias de nossa base. A distância, a população pode achar que derrubar pés de laranja foi uma atitude desnecessária. A direita, por meio do serviço de inteligência da PM, soube utilizar [as imagens] contra a reforma agrária, se articulando com emissoras de TV para usá-las insistentemente. Nunca essas emissoras denunciaram a grilagem nem a superexploração que a Cutrale impõe aos agricultores.
Os dados do censo [agropecuário] revelam que menos de 15 mil latifundiários são donos de mais de 98 milhões de hectares. A renda média dos assalariados do campo é menor que um salário mínimo. Diante disso, reafirmamos que é fundamental democratizar a propriedade da terra, como manda a Constituição, e mudar o modelo agrícola, para priorizar a produção de alimentos sadios para o mercado interno.
Bancos e empresas transnacionais controlam a agricultura. E, quando ocupamos uma terra para pressionar a aplicação da reforma agrária, enfrentamos todo esses interesses. O Brasil precisa de um projeto que combata as causas da desigualdade social e garanta o acesso a terra, educação, moradia e saúde a todos, e não apenas a uma minoria.
Quem tem razão?

Rapidinhas, mas necessárias

Família Sarney interfere em agenda de Edison Lobão
A Polícia Federal interceptou conversas que revelam que Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), controla a agenda do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. Nos diálogos, Fernando e o ex-ministro Silas Rondeau (Minas e Energia), aliado da família Sarney, ditam compromissos para Lobão ou para seus assessores. Também marcam e cancelam reuniões do ministro sem avisá-lo previamente.

Who is it in the Press?

Quem diz essa frase é Júlio César, na peça homônima de Shakespeare. Não gosto de usar citações em outro idioma nos meus textos, mas, neste caso, é preciso em virtude do significado da palavra “press”, hoje, diferente.
Andando com Marco Antônio entre a multidão, a caminho do Senado, Júlio César ouve alguém gritar por ele e responde: “who is it in the press that calls on me”, “quem me chama no meio da multidão”. Sabe-se que “press”, em inglês significa imprensa, e que a Imprensa ainda não existia no período em que Shakespeare viveu.
“Press” naquela época entendia-se como povo, gente, multidão. A relação entre a Imprensa, o Governo e a Sociedade é um dos fenômenos mais complexos do mundo contemporâneo. Fernando Henrique Cardoso disse uma vez, quando era Presidente da República, que ele precisava ler os Jornais todos os dias, para saber o que “ele estava pensando”.
Não mentiu quando disse isso. O poder da Imprensa é gigantesco, e distorções e manipulações podem alterar por completo todo um estado de coisas. A mentira sempre pode fazer grandes estragos.
É comum, no Brasil, rotular, carimbar os “formadores de opinião”, jornalistas e escritores, que opinam sobre assuntos do dia a dia da nação e do mundo obrigando-os a “ter um lado” - seja sobre políticas públicas ou questões de natureza moral ou ética - como se não houvesse parâmetros para análises isentas.
Os governos criam todos os dias, leis que geram mais confusão do que resultados, que atropelam essa ou aquela dimensão institucional, trazendo graves conseqüências para o futuro. No entanto, existe uma patrulha atuando para que especialistas silenciem diante dos descalabros diários do Estado.
Achar que todas as pessoas que escrevem na Imprensa são vendidas, que o fazem por dinheiro ou por favores, que seus textos são de encomenda, ou ainda, que são opiniões ideológicas, partidárias e que não têm compromisso com a verdade é um grande erro.
Existem opiniões isentas, sim. O grupo que age com isenção é pequeno, infinitamente menor do que aqueles estão comprometidos com seu próprio bolso, mas ele existe. Os homens públicos e o governo precisam ser vigiados, pois são manipuladores.
O Estado é um monstro, é Thomas Hobbes quem nos alerta, em O Leviatã, “no entanto, ele, o monstro (o Estado) quer carinho”. O escritor sério busca a verdade, orienta a sociedade, pois esse é o papel da Literatura.
Embora sejam antípodas, a Literatura orienta a Política e a complementa, pois trabalha pra consertar seus erros. Já fez e tenta fazer todos os dias o seu papel de antena da sociedade. É Hamlet na sua conversa com os atores quem afirma: “o papel da arte foi, e é oferecer um espelho a natureza”.
Shakespeare escreveu numa época onde ainda não havia ideologias e isso é muito bom, já que impede que ele venha a ser rotulado como se faz comumente com todos. Esquerdista, neoliberal, machista, sexista, racista, imperialista, e vários outros carimbos de igual tamanho.
Leio Shakespeare porque ele não está contaminado por essas coisas. A grande Literatura só existe porque é honesta. Os grandes autores eram homens virtuosos e as exceções são poucas. Quando não o eram, procuravam sê-lo.
O grande problema do Brasil ainda é que os bons – e são poucos - estão calados diante da iniqüidade que há muito tempo perdura no país. Repentinamente alguém grita: qual é seu papel na multidão?
Postado por Theófilo Silva, Presidente da Sociedade Shakesperae de Brasília e Colaborador da Rádio do Moreno.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

La Mauvaise Vie de Frédo Mitterrand

Quatro anos atrás, o sobrinho do falecido ex-Presidente francês François Miterrand, Frédéric Mitterrand ou, simplesmente, Frédo publicou "La Mauvaise Vie" [A Má Vida], causando alguns burburinhos. Muitos gostaram da literatura; outros olharam atravessado a autobiografia em que o autor descreve os seus deleites em viajar à Tailândia para fazer sexo com garotos de programa.
Hoje, ministro francês da Cultura, graças ao apoio da intelectualidade de esquerda e, especialmente, de Carla Bruni, Frédo está envolto em uma polêmica ainda maior, embora de fatos novos só exista o apoio explícito que deu ao cineasta Roman Polanski, acusado de pedofilia nos EUA num fato ocorrido em 1977.
De acordo com o ministro, era "absolutamente espantoso" que o cineasta tivesse sido preso por "uma antiga história que não tem realmente sentido". Às insinuações de que o apoio era desproposital, o ministro rebateu: "O trabalho de um ministro da Cultura é defender os artistas na França. Ponto final".
Foi o que bastou para a direita francesa reacender o debate e criticar a permanência de Frédo no cargo. Os jornais reproduziram o assunto, alguns, de maneira parcial. O "El Mundo" trouxe uma reportagem sobre o "ministro pedófilo de Sarko". O "Daily Mail" garante que o ministro tem uma preferência grande por "meninos" e mais jovens.
Mitterrand nega que tenha saído com menores, embora reafirme tudo que escreveu: "Sim, tive relações com rapazes, é sabido, não o escondo, mas é preciso não confundir, ou então estaríamos verdadeiramente de volta à Idade da Pedra. É preciso não confundir a homossexualidade e a pedofilia e se ler o livro com clareza, penso que isso é evidente".
O "Times" se refere ao episódio como um "caso tipicamente francês". Se ele tivesse confessado que saíra com prostitutas não haveria problemas. O que ofende os franceses, segundo a reportagem, é a suspeita de pedofilia.
Questões políticas à parte, o que está em debate é a liberdade artística e o direito à intimidade de um homem público em face da liberdade de imprensa e da ética pública, supostamente ferida pela suspeita de pedofilia. Sinceramente, há hipocrisia nessa história toda. A direita sabe, os jornais reproduzem.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A crise em Honduras

É difícil aceitar que um presidente da República, ainda que deposto, seja retirado de sua casa de pijamas por forças militares, posto num avião e deixado num país vizinho. A truculência da medida arrepia a espinha de qualquer um e é ainda mais repulsiva, por evocar atitudes vividas no Brasil há pouco tempo.
Talvez esteja nesse ato excessivo o pecado do atual regime político de Honduras. Tudo (ou quase tudo) o mais é aplicação das previsões constitucionais. A Constituição daquele país, tentando fugir da sina latinoamericana do personalismo político ou, como escuto coincidentemente agora Caetano, de seus "ridículos tiranos", proibiu a possibilidade de reeleição para a presidência da República (arts. 4o e 239) e ainda pôs a salvo do poder de emenda constitucional, como cláusula pétrea, portanto, essa proibição (art. 374).
Manuel Zelaya, no exercício da Presidência, não se conformou com a vedação. Como sabemos, seguia o roteiro de outros presidentes latinoamericanos recentes e passados. Contra a Constituição, pôs em jogo a vontade popular que, em referendo, haveria de dizer, ela sim, não o texto constitucional, se poderia ou não ser reeleito. Queria mais: a convocação de uma assembléia nacional constituinte.
O comportamento é contrário à idéia de Constituição. Recorrer à consulta do eleitorado para deliberadamente contrariar o regramento constitucional está fora dos seus propósitos. A menos que se admita, contra essa idéia, que se vive em permanente estado constituinte, de modo que se pode a qualquer momento desafiar a estabilidade e permanência do texto constitucional.
Entretanto, a tese que prevalece, para evitar aventureiros políticos e reforçar o sentido de autoidentidade, é a de que a vontade popular constituinte se manifesta apenas em ambiente de profunda e difusa insatisfação com a ordem constitucional vigente, com suas normas e valores, sua legitimidade e legalidade, criando o espaço propício e extraordinário (suficientemente perigoso também) para adotar outra Constituição.
Embora distante de Honduras, procurei acompanhar os acontecimentos e recuperar a ocorrência dos fatos. Por mais apoiadores que Zelaya tivesse, não havia clima constituinte para definir o instante hondurenho como excepcional a ponto de sustentar uma ruptura institucional. Pois era exatamente isso que estava preste a ocorrer: uma ruptura institucional nos moldes de uma consulta popular que sobreporia a Constituição.
Pois bem, a Suprema Corte do país declarou inconstitucional a convocação feita pelo presidente para que o povo fosse as urnas. O Congresso Nacional também aprovou uma lei que vedava consultas populares 180 dias antes e depois das eleições presidenciais marcadas para novembro de 2009. Entretanto, Zelaya não sucumbiu às determinações da Corte ou da lei e insistiu que realizaria a consulta de toda forma.
Acontece que o artigo 4o, partes 2 e 3, da Constituição prescreve: "A alternância no exercício da Presidência da República é obrigatória. A infração desta norma constitui delito de traição à Pátria". A segunda parte do artigo 239 que proíbe a reeleição completa: "Quem violar esta disposição ou propuser sua reforma, assim como aqueles que o apoiarem direta ou indiretamente, cessarão de imediato no desempenho de seus respectivos cargos, ficando inabilitados por dez anos para o exercício de toda função pública".
Há ainda reforço dos artigos 2.2 e 3 que reprovam de maneira contundente a usurpação constitucional pelos poderes constituídos, chegando a reconhecer o direito de o povo recorrer à insurreição em defesa da própria Constituição.
O processo de afastamento é, todavia, lacunoso. O artigo 319.2, em conjunto com o 205.15, dá à Suprema Corte o poder para julgar os delitos oficiais e comuns dos altos funcionários da República, quando o Congresso Nacional autorizar. Mais não diz, o que, para alguns, torna a disposição não autoaplicável, visão, sem embargo, equivocada.
Os registros de como se deu o afastamento presidencial são controversos. Segundo uma das versões do Congresso, Zelaya teria renunciado ao cargo em carta dirigida à Casa. Zelaya nega que a tenha escrito ou assinado. O decreto de destituição, entretanto, não faz menção à renúncia.
Antes, julga o presidente, ou cidadão Manuel Zelaya Rosales, como faz questão de a ele se referir, inabilitado para o cargo em decorrência de “conduta irregular (...) ao violentar de maneira reiterada a fidelidade da República e o estatuto jurídico de nosso país, pondo em iminente perigo o Estado de Direito e o sistema de governo democrático que o povo por vontade democrática”. O Congresso poderia ter feito o que fez?
Não há bases constitucionais expressas para tanto e todas as menções normativas que o decreto faz não autorizam a destituição pelos congressistas. Horas depois da reunião congressual, contudo, a Suprema Corte divulgou nota em que reconhecia a legalidade da medida, inclusive da destituição e retirada do presidente do território hondurenho. Informava, ainda, que dois dias antes autorizara as Forças Armadas a adotar todas as providências necessárias para impedir que o Executivo levasse adiante seu projeto de consulta popular.
Seja como for, declarada a vacância, o cargo foi ocupado pelo presidente do Congresso, em virtude da anterior renúncia do vice-presidente, conforme determina o artigo constitucional 242. As falhas do devido processo constitucional de destituição se agravaram com a sua execução truculenta e distante das formas jurídicas.
A Constituição hondurenha assegura, dentre outros direitos, o respeito à integridade psicofísica e moral dos indivíduos: "Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade será tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano" (art. 68).
O artigo 84.3 dispõe que o preso ou detento deve ser informado no ato e com toda clareza de seus direitos e dos fatos que se lhe imputam, sendo-lhe permitido comunicar-se com um parente ou pessoa de sua escolha. O artigo 90 estabelece, como garantia contra a arbitrariedade, o devido processo legal, bem assim, o 82 assegura o direito de defesa. O artigo 97, por sua vez, dispõe que ninguém poderá ser condenado a penas perpétuas, infamantes, proscritivas ou confiscatórias.
E, ainda mais pertinente, o artigo 102 determina que "nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro". Tais disposições valem para qualquer cidadão, mas não valem para o presidente da República?. Pois respondo: valem.
E, por mais receio que as lideranças políticas hondurenhas tivessem com o chavismo de Zelaya e com a premência do quadro institucional, não poderiam ter feito o que fizeram. Em resumo: com más ou boas intenções, foi um golpe de Estado, decretado pelo Congresso com apoio da Suprema Corte e dos militares. Infelizmente.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Dica: Os Fantásticos Mistérios de Lygia

Acabou de sair o livro "Os Fantásticos Mistérios de Lygia", de Aíla Sampaio (Editora Expressão Gráfica, 2009, 188 páginas). Leia as resenhas e análises sobre a obra.
Em OPovo (Vida & Arte), por Angélica Feitosa:
O título é, sim, fruto da conclusão do mestrado em Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). Não se deixe afetar, no entanto, pela ideia de academicismo que uma dissertação pode fazer lembrar. Os Fantásticos Mistérios de Lygia, ao contrário, mais parece um convite a percorrer a obra de Lygia Fagundes Telles no que diz respeito à condição do extraordinário na obra da escritora paulista.
Aíla partiu de uma inquietação: ao longo da história, o fantástico foi geralmente retratado por um reduzido número de opções, sempre seguindo seres incomuns como gigantes, duendes, bruxas, enfim, pelo sobrenatural. De que forma, então, essa mesma temática ganhou os contos reunidos no livro Mistérios (1981), de Lygia?
"Eu já tinha uma aproximação com esse gênero da literatura e me interessei em fazer uma comparativa para perceber como em textos tão fortes e, ao mesmo tempo, sutis da escritora dialogam com o fantástico do século XIX e XX", aponta a autora.
Aíla sugere respostas na medida em que os questionamentos apontam se a direção dos contos de Lygia foi pelo tradicional ou seguiu os rumos de uma modernidade. Para isso, a autora faz um trajeto pela história do fantástico na literatura, principalmente a partir do século XIX.
Um comparativo com obra de Machado de Assis e José J. Veiga e do argentino Júlio Cortazar. "Meu trabalho chama à leitura da obra de Lygia, jamais tem o objetivo de substituí-la", deixa claro a autora. Ela quer provocar o mesmo processo de descobrimento pelo qual passou na época da faculdade, com as primeiras leituras mais aprofundadas dos textos da escritora paulista.
"O fantástico é tudo que subverte o real sem uma explicação plausível", conceitua a autora. Lygia atua esse mesmo extraordinário no campo do cotidiano, mescla os acontecimentos inexplicáveis com situações absolutamente corriqueiras. Espaços simples como uma butique de antiguidades desencadeia o processo de subversão.
"No conto A Caçada, por exemplo, traz a história de um cliente da loja de objetos antigos e se depara com um quadro e se sente fortemente identificado por ele. Ao final, a flecha do quadro dispara e o homem cai. Há uma provocação, uma confusão dos dois espaços", identifica. A história transcende as leis da razão, do entendimento e até das certezas, já que não fica claro se o homem cai morto ou não.
O sobrenatural está presente, mas de outro modo. Temas como viagem ao passado, o encontro com um eu de outra vida até poderiam ser explicados por uma crença religiosa, por exemplo, mas não condiz com a autonomia da obra. "Se não são feitas referências, não é possível partir para uma análise extra-livro. Mas, claro que existe a cosmovisão daquele autor e isso deve ser levado em consideração", pontua a autora.
=========================================================
No DN (reportagem de Henrique Nunes):
O fantástico é uma das marcas da literatura de Lygia Fagundes Telles. Nele, a escritora paulistana se envolveu sobretudo em "Mistérios", coletânea de contos de 1981. Quinze anos depois, a então estudante Aíla Sampaio se debruçou sobre estas narrativas para compor "Tradição e modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles", sua dissertação na Universidade Federal do Ceará.
Hoje professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da Unifor, Aíla a publica em forma de ensaio como "Os Fantásticos Mistérios de Lygia". "Esperei o crivo do tempo. Enxuguei, tirei o ranço do trabalho acadêmico, atualizei a ortografia, e agora a pesquisa é socializada com todos interessados pela obra de Lygia e pelos insondáveis mistérios da existência.
Temas como o duplo, a ressurreição e a morte são analisados dentro do texto literário da escritora", apresenta.Com "Mistérios", acrescenta a pesquisadora, Lygia mostra sua versatilidade na criação ficcional. "Ela tanto escreve romances intimistas com propensão psicológica como contos vazados de temas transversais como ética, amor, cumplicidade, como constrói ainda universos enigmáticos", aponta.
Depois, ela constata a presença de narrativas fantásticas nas obras: "A Noite Escura e Mais Eu", no conto "Anão de Jardim", e "Invenção e Memória", em "A Chave na Porta", cuja construção do fantástico, segundo Aíla, é "perfeita". A pesquisadora cearense atribui esse fascínio pelo fantástico, em parte, ao fato de Lygia desde pequena se sentir "fascinada por esse universo de seres insólitos", provavelmente estimulada pelas histórias de Trancoso ouvidas de sua pagem na infância.
Posteriormente, as leituras de autores como E.T. A Hoffman, Alan Poe e Machado de Assis contribuíram para incrementar sua admiração pelo gênero, talvez estimulada ainda pelo amizade com pelo menos uma escritora, a amiga Hilda Hilst (1930-2004). "Meu primeiro contato com Lygia foi com o ´Ciranda de Pedra´, seu romance de estréia, que traz uma abordagem psicológica dos personagens. Depois foi que entrei em contato com as narrativas curtas, e ´Mistérios´ me chamou especial atenção.
Como havia estudado o gênero fantástico, interessou-me aplicar sua teoria a estes contos. Foi aí que percebi que todo fantástico é um mistério, mas nem todo mistério é fantástico. Por exemplo, os contos ´A caçada´, ´Noturno Amarelo´, ´O Encontro´ e ´As Formigas´, de ´Mistérios´, são contos fantásticos porque transgridem as leis da razão de forma inexplicável. Já os contos ´Venha ver o pôr-do-sol´, ´Jardim Selvagem´ e ´O Noivo´ apenas encenam um evento macabro ou estranho".
Seu ensaio tem como objeto de análise os contos de Lygia Fagundes Telles, mostrando a configuração do gênero Fantástico nos contos da escritora e comparando-os a narrativas de Machado de Assis, Edgar Allan Poe, E. T. A Hoffman, Teophile Gautier, escritores do século XIX, e ainda Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Murilo Rubião e J.J. Veiga, do século XX.
O fantástico"Mostro que a configuração do Fantástico depende dos procedimentos narrativos de cada autor. O sobrenatural ou extra-natural, nos contos, em geral, não dependem mais da aparição de fantasmas, de seres incomuns.
Uma simples máquina, um cachecol ou outros objetos comuns podem desencadear um evento que transponha as leis do real. O romance ´Os Verdes Abutres da Colina´, de José Alcides Pinto, é um romance fantástico porque ele transgride as leis naturais de forma inexplicável", exemplifica.

A lavanderia da imoralidade

O direito deve ser moral? Ainda existem os que respondem afirmativamente. A Modernidade os desafia, entretanto. O ganho de complexidade do sistema social, com as transformações havidas especialmente depois do século XV, obrigou a uma diferenciação funcional entre os diversos planos normativos. O direito, enfim, distinguiu-se da moral. Cada um deles assumiu seu próprio código, de acordo com a finalidade.
A distinção das condutas legais das ilegais para cumprir a tarefa de certeza e integração social foi o que restou ao sistema jurídico, enquanto a moral cuidava da justiça ou do código bem/mal ou virtude/vício. Continuaram vizinhos, como espaços de contato e comunicação, mas uma norma jurídica já não precisava ser obrigatoriamente justa ou moral para ser válida.
Quando muito, a lei deveria ser constitucional, último reduto de moralidade que permaneceu embebida em fórmulas jurídicas como os direitos, a dignidade humana e os princípios de probidade política e administrativa. Entretanto, a leitura moral da Constituição que serve para validar ou interpretar as leis produzidas ordinariamente tem os limites impostos pelo código jurídico.
Certos argumentos morais tendem a ceder a argumentos de eficiência ou de acordos de interesses, que expressamente tenham respaldo constitucional, se seguirem o trâmite processual das deliberações constitucionais ou, mais brevemente, se cumprirem o devido processo constitucional.
Às vezes, o desenvolvimento econômico e o equilíbrio das contas do Estado superam o sentimento de injustiça que certas medidas inspiram. É exatamente o que está em jogo com dois projetos de lei que anistiam as pessoas que remeteram suas fortunas para o exterior cometendo fraude fiscal e evasão de divisas. Um projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados por José Mentor (PT-SP), o PL-5228/2005, e outro no Senado, por Delcídio Amaral (PT-MS), o PLS-443/2008.
Embora o projeto do senador seja mais amplo, ambos preveem a anistia de multas e penalidades administrativas, além da extinção da punibilidade de crimes relacionados com a remessa ilegal (PL-5228/2005) ou, mais especificamente, no PLS-443/2008, dos delitos contra a ordem tributária, econômica e financeira (Lei nº 8.137/1990), de descaminho (art. 334 e seu parágrafo primeiro, CPB), de falsidade material de documentos públicos e privados (arts. 297 e 298, CPB), de falsidade ideológica (art. 299), contra a previdência social (arts. 168-A e 337-A, CPB) e contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1986).
O contribuinte deverá formular pedido à Receita Federal, sujeitando-se a uma taxação sobre o que foi repatriado. Assegura-se aos beneficiários, além do anonimato, a impossibilidade de ver outros tributos, por ventura sonegados na evasão ou fraude fiscal, incidirem sobre os valores trazidos de volta ou simplesmente legalizados.
As alíquotas variam de acordo com a finalidade: é maior, por exemplo, se o dinheiro ou o bem tiver de continuar no exterior. O PLS-443/2008 determina que os recursos repatriados sejam aplicados em fundos de investimentos destinados a custear projetos de infraestrutura, só podendo ser resgatados após carência de cinco anos.
O PL-5228/2005 não define a aplicação, exigindo apenas que os valores repatriados devam permanecer aplicados no Brasil pelo prazo de dois anos. Também estão dentro do perdão os capitais que, em tese, permanecem no exterior, mas que, na prática, já foram internados de maneira simulada.
Na verdade, as autoridades financeiras do país conhecem bem esse embuste, moeda corrente no mercado. O "investidor" brasileiro envia ilegalmente o dinheiro para o exterior, depositando-o numa empresa sua ou de interposta pessoa, aberta num paraíso fiscal. São as famosas "offshores". Como estão sediadas nos paraísos, não se sabe oficialmente quem é o dono ou a origem da empresa ou do dinheiro. O mercado sabe, mas o direito não prova.
O passo adiante é dado por uma empresa pertencente ao "investidor" brasileiro (ou a ele ligada): ela contrai um empréstimo junto à offshore e passa a aplicar esse dinheiro, lavado, no Brasil. Boa parte dos recursos que estão na bolsa de valores em nome de "investidores estrangeiros" tem também a mesma fonte. Essa internação do dinheiro é lícita, mesmo que tenha cheiro imoral.
Mas nem tudo é só podridão neste reino. Os projetos não permitem a legalização de recursos que tenham sido obtidos por meio do tráfico, de terrorismo, da pornografia infantil, da improbidade administrativa, de extorsão e outros crimes.
Os argumentos que os autores dos projetos sustentam são basicamente três. Por razões diversas, em geral de natureza econômica e associadas a aumento da arrecadação, vários países, entre os quais o Chile, a Espanha, os Estados Unidos, a Itália e o México, adotaram providências semelhantes.
Nenhum deles pode ser chamado de autoritário, de parceiro do crime ou de imoral. São todos democráticos e constitucionais. O Fisco brasileiro como se deu naqueles países encharcará as burras, ainda mais em período eleitoral.
Segundo: é preciso fazer justiça com investidores que no passado foram injustiçados pelo governo brasileiro. Para fazer frente às sucessivas crises econômicas vividas nos anos 1980 e 1990 pelo país, foram adotados diversos planos econômicos que, quase sempre, impuseram restrições cambiais severas, quando não impediram a importação ou exportação de determinados bens.
Essas providências levaram para a ilegalidade muitas empresas e pessoas físicas. O mercado paralelo do dólar, por exemplo, foi a saída para continuarem seus negócios aqui e lá fora. Parte considerável no que se encontra no exterior tem essa origem.
Finalmente, os subscritores dos projetos estão convencidos de que o desenvolvimento nacional será estimulado com a introdução de expressivo volume de capital brasileiro depositado no exterior. Delcídio chamou o seu projeto de “estímulo à cidadania fiscal”. De acordo com o levantamento feito pela CPI do Banestado, de 2004, estima-se que exista ilegalmente fora do país cerca de US$ 150 bilhões. Na avaliação de Mentor, metade desse importe pode retornar ao Brasil com a aprovação da anistia.
Um receio pesa sobre as autoridades financeiras do país: o ingresso intenso dos dólares, se ocorrer, valorizará ainda mais o Real frente às moedas estrangeiras com prejuízos para a balança de pagamentos e para as metas fiscais do governo.
Por outro lado, boa parte do dinheiro ilegal já está transitando no país, principalmente no mercado financeiro, sendo duvidoso que os "investidores" queiram oficialmente repatriá-los à custa de entregar uma fatia para a Receita.
Mas nem só de economia vivem as críticas. O moralômetro tem dado sinais de fadiga. Há, por exemplo, uma injustiça fiscal embutida nos projetos. A repatriação do dinheiro gozará, disfarçadamente, de um benefício fiscal.
Quem manteve seus recursos no país teve, em regra, de pagar, a título de imposto de renda, entre 27,5% (pessoa física) e 34% (pessoa jurídica) do que recebeu ou lucrou. Os que remeteram seus valores ilegalmente para o exterior, em contrapartida, pagarão apenas 8% a 15%, conforme o caso.
O mais grave das propostas, entretanto, decorre da impossibilidade prática de distinguir o dinheiro que foi enviado para fora do país por "mera" sonegação e evasão fiscal daquele oriundo da corrupção, do sequestro, do tráfico de pessoas, de armas e entorpecentes e do terrorismo.
Os projetos atribuem essa tarefa de separar o joio do trigo às instituições financeiras. Não é só um paradoxo essa previsão, mas uma inversão das coisas públicas, para não dizer desfaçatez que é muito forte. Os bancos, ávidos por recursos, darão atestado de idoneidade. Mesmo que quisessem cumprir fielmente a tarefa, retirando a pele de lobo, teriam, na melhor das hipóteses, que acreditar na declaração do correntista. E só. A Receita, o Coaf ou a polícia é quem deveria ser encarregado da missão. Mas, aí, frustraria o intento.
Há uma inquietação ainda mais angustiante: o dinheiro sujo, mesmo lavado com o brasão da República, buscará, provavelmente, o retorno vultoso e promissor de novos crimes. Mas esses argumentos não são bastantes para declarar os projetos ou, mais exatamente, a ou as futuras leis inconstitucionais.
A equação dos interesses em conflito parece desajustada em face de alguns princípios constitucionais, embora seja pouco provável que o STF venha a reconhecê-lo em virtude de seus precedentes. A isonomia tributária, por exemplo, é violada, pois há um benefício patente em favor de quem enviou o dinheiro para o exterior em detrimento do contribuinte que honrou seus compromissos fiscais internamente.
Entretanto, o Fisco vive a adotar sistemas de anistias e moratórias, como no Refis (Programa de Recuperação Fiscal), sem que haja, no entender do Tribunal, comprometimento da ordem constitucional. No ponto específico da isonomia, tem-se reiterado o poder de a lei tributária discriminar os contribuintes, por motivo extrafiscal, desde que a distinção seja razoável, aplicando-se, no caso, a todas as pessoas de uma classe ou categoria.(ADIMC 1643/DF e 2031/DF).
Assim também alguns advogam que o princípio da punibilidade, decorrência da garantia institucional expressa da segurança pública e da integridade do Estado, da sociedade e dos indivíduos, bem como dos direitos fundamentais, não teria sido adequadamente levado em conta.
Ocorre que esse princípio, com exceção de algumas determinações constitucionais expressas, está no âmbito de configuração do legislador e da política criminal, não tendo conseguido até hoje a simpatia dos Ministros para revisar as opções legislativas feitas, inclusive no caso do Refis (ADI n. 1571/DF; 1a.Turma. RHC n. 89.618/RJ). Também parece desafiar o perfil do Estado constitucional a delegação do poder de polícia ao próprio mercado, tema que divide a Corte, embora com posições recentes majoritariamente contra essa possibilidade (ADI n. 1717/DF).
Em suma, discricionariedade política e administrativa, associada a interesses constitucionais de equilíbrio fiscal e de desenvolvimento do país, tende a suplantar as normas constitucionais afetadas e mesmo eventuais desconfortos morais com as medidas anunciadas. Não interessam aos juízos constitucionais de adequação as motivações ou determinações psicológicas do legislador, se os argumentos que suportam a legitimidade estão constitucionalmente bem formulados.
Que venham, então, novas anistias, pois o repertório das maldades não tem limites. Ah se o direito fosse ainda moral! E como custa ser moderno!

domingo, 4 de outubro de 2009

Ciro e Coriolano

Não sei se Ciro Gomes já leu Coriolano, uma das peças políticas de Shakespeare. Se não o fez, está na hora de fazê-lo! Ciro Gomes tem muito da natureza de Caio Márcio Coriolano, general romano de família nobre, favorito da mamãe, orgulhoso, soberbo, valente e virtuoso. E mais, carrega o coração na boca. Fala o que pensa. E é essa língua que acaba por destruí-lo.
Ciro Gomes vem de uma família de classe média, seu pai foi prefeito de Sobral, uma tórrida cidade no sertão do Ceará, famosa pelo orgulho de seus moradores. A cidade tem um lado folclórico: a fama de ser “americana”, dado a admiração que seus filhos têm pelos EUA e por alguns “hábitos”: o Derby, Beisebol, School Bus.
É difícil um cearense que não aponte os sobralenses como um povo soberbo e, com, com seu senso de humor afiado, chamam Sobral de “United States of Sobral” e 51º estado americano. Dizem que esse “americanismo” seria proveniente de três fatores. Foi em Sobral que Albert Einstein provou a Teoria da Relatividade.
Segundo: até a década de 30 Sobral era a principal cidade do Ceará. E terceiro: que a cidade foi fundada por americanos. Por isso os sobralenses dizem que têm um passado burguês, “aristocrático”.
O fato é que Sobral berço de Renato Aragão, pena com as brincadeiras e gozações de seus conterrâneos, que cunharam centenas de piadas sobre seus cearenses “americanos”. Até onde a soberba de Ciro, que tem lhe custado caríssimo, é fruto disso não sabemos.
O certo é que sua incontinência verbal e seu ar de superioridade estancaram sua vitoriosa carreira política. Ciro, dizem no Ceará, nasceu com “uma estrela na testa”, tão meteórica foi sua ascensão na política.
Com 37 anos, já fora Deputado Estadual, Prefeito de Fortaleza, Governador do Ceará e Ministro da Fazenda. Desdenhou uma vaga certa no Senado e passou um ano na Universidade de Harvard como aluno visitante. Hoje, é detentor de uma oligarquia.
Ciro, chegando tão cedo aonde chegou, estagnou e não conseguiu um “vôo nacional” sólido como queria. Candidato à Presidência da República por duas vezes, teve uma votação apenas simbólica. Foi obrigado a recomeçar, sendo candidato a deputado federal pelo Ceará, obtendo uma votação espetacular.
Ciro pode corrigir seu temperamento? Poderá, como diz Shakespeare em Júlio César, “forjar seu metal”? Refrear sua língua? Ele tem reconhecido seus erros. Arrepende-se das besteiras que disse. Coriolano foi obrigado a “calçar as sandálias da humildade” – um teste obrigatório para tornar-se Cônsul de Roma.
Vestido com roupas humildes, ele teve que sair nas ruas pedindo o voto do povo. Conseguiu após muito esforço, já que, para ele, era um constrangimento misturar-se aos pobres. Instado por seus nobres pares, teve que fazê-lo. Ganhou o cargo de Cônsul, para perdê-lo horas depois, ao responder a provocação de dois tribunos intrigantes.
Ciro precisa provar para a sociedade brasileira que é hoje um homem maduro, que superou seus conflitos juvenis e que seu orgulho de sobralense – de suposta burguesia inexistente, decadente – foi apagado. Que não é marcado por questões com a mãe, como Coriolano – a arrogância da maioria dos homens é fruto do favoritismo materno.
Para que não aja como Coriolano, que disse: “agora que me destes vossos votos, nada mais quero convosco”. Se provar, aí sim, estará pronto para mostrar que o Brasil é bem maior que o Ceará e que poderá fazer pelo país o que todos nós esperamos.
Postador por Theófilo Silva, Presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília e Colaborador da Rádio do Moreno