O direito deve ser moral? Ainda existem os que respondem afirmativamente. A Modernidade os desafia, entretanto. O ganho de complexidade do sistema social, com as transformações havidas especialmente depois do século XV, obrigou a uma diferenciação funcional entre os diversos planos normativos. O direito, enfim, distinguiu-se da moral. Cada um deles assumiu seu próprio código, de acordo com a finalidade.
A distinção das condutas legais das ilegais para cumprir a tarefa de certeza e integração social foi o que restou ao sistema jurídico, enquanto a moral cuidava da justiça ou do código bem/mal ou virtude/vício. Continuaram vizinhos, como espaços de contato e comunicação, mas uma norma jurídica já não precisava ser obrigatoriamente justa ou moral para ser válida.
Quando muito, a lei deveria ser constitucional, último reduto de moralidade que permaneceu embebida em fórmulas jurídicas como os direitos, a dignidade humana e os princípios de probidade política e administrativa. Entretanto, a leitura moral da Constituição que serve para validar ou interpretar as leis produzidas ordinariamente tem os limites impostos pelo código jurídico.
Certos argumentos morais tendem a ceder a argumentos de eficiência ou de acordos de interesses, que expressamente tenham respaldo constitucional, se seguirem o trâmite processual das deliberações constitucionais ou, mais brevemente, se cumprirem o devido processo constitucional.
Às vezes, o desenvolvimento econômico e o equilíbrio das contas do Estado superam o sentimento de injustiça que certas medidas inspiram. É exatamente o que está em jogo com dois projetos de lei que anistiam as pessoas que remeteram suas fortunas para o exterior cometendo fraude fiscal e evasão de divisas. Um projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados por José Mentor (PT-SP), o
PL-5228/2005, e outro no Senado, por Delcídio Amaral (PT-MS), o
PLS-443/2008.
Embora o projeto do senador seja mais amplo, ambos preveem a anistia de multas e penalidades administrativas, além da extinção da punibilidade de crimes relacionados com a remessa ilegal (PL-5228/2005) ou, mais especificamente, no PLS-443/2008, dos delitos contra a ordem tributária, econômica e financeira (Lei nº 8.137/1990), de descaminho (art. 334 e seu parágrafo primeiro, CPB), de falsidade material de documentos públicos e privados (arts. 297 e 298, CPB), de falsidade ideológica (art. 299), contra a previdência social (arts. 168-A e 337-A, CPB) e contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1986).
O contribuinte deverá formular pedido à Receita Federal, sujeitando-se a uma taxação sobre o que foi repatriado. Assegura-se aos beneficiários, além do anonimato, a impossibilidade de ver outros tributos, por ventura sonegados na evasão ou fraude fiscal, incidirem sobre os valores trazidos de volta ou simplesmente legalizados.
As alíquotas variam de acordo com a finalidade: é maior, por exemplo, se o dinheiro ou o bem tiver de continuar no exterior. O PLS-443/2008 determina que os recursos repatriados sejam aplicados em fundos de investimentos destinados a custear projetos de infraestrutura, só podendo ser resgatados após carência de cinco anos.
O PL-5228/2005 não define a aplicação, exigindo apenas que os valores repatriados devam permanecer aplicados no Brasil pelo prazo de dois anos. Também estão dentro do perdão os capitais que, em tese, permanecem no exterior, mas que, na prática, já foram internados de maneira simulada.
Na verdade, as autoridades financeiras do país conhecem bem esse embuste, moeda corrente no mercado. O "investidor" brasileiro envia ilegalmente o dinheiro para o exterior, depositando-o numa empresa sua ou de interposta pessoa, aberta num paraíso fiscal. São as famosas "offshores". Como estão sediadas nos paraísos, não se sabe oficialmente quem é o dono ou a origem da empresa ou do dinheiro. O mercado sabe, mas o direito não prova.
O passo adiante é dado por uma empresa pertencente ao "investidor" brasileiro (ou a ele ligada): ela contrai um empréstimo junto à offshore e passa a aplicar esse dinheiro, lavado, no Brasil. Boa parte dos recursos que estão na bolsa de valores em nome de "investidores estrangeiros" tem também a mesma fonte. Essa internação do dinheiro é lícita, mesmo que tenha cheiro imoral.
Mas nem tudo é só podridão neste reino. Os projetos não permitem a legalização de recursos que tenham sido obtidos por meio do tráfico, de terrorismo, da pornografia infantil, da improbidade administrativa, de extorsão e outros crimes.
Os argumentos que os autores dos projetos sustentam são basicamente três. Por razões diversas, em geral de natureza econômica e associadas a aumento da arrecadação, vários países, entre os quais o Chile, a Espanha, os Estados Unidos, a Itália e o México, adotaram providências semelhantes.
Nenhum deles pode ser chamado de autoritário, de parceiro do crime ou de imoral. São todos democráticos e constitucionais. O Fisco brasileiro como se deu naqueles países encharcará as burras, ainda mais em período eleitoral.
Segundo: é preciso fazer justiça com investidores que no passado foram injustiçados pelo governo brasileiro. Para fazer frente às sucessivas crises econômicas vividas nos anos 1980 e 1990 pelo país, foram adotados diversos planos econômicos que, quase sempre, impuseram restrições cambiais severas, quando não impediram a importação ou exportação de determinados bens.
Essas providências levaram para a ilegalidade muitas empresas e pessoas físicas. O mercado paralelo do dólar, por exemplo, foi a saída para continuarem seus negócios aqui e lá fora. Parte considerável no que se encontra no exterior tem essa origem.
Finalmente, os subscritores dos projetos estão convencidos de que o desenvolvimento nacional será estimulado com a introdução de expressivo volume de capital brasileiro depositado no exterior. Delcídio chamou o seu projeto de “estímulo à cidadania fiscal”. De acordo com o levantamento feito pela CPI do Banestado, de 2004, estima-se que exista ilegalmente fora do país cerca de US$ 150 bilhões. Na avaliação de
Mentor, metade desse importe pode retornar ao Brasil com a aprovação da anistia.
Um receio pesa sobre as autoridades financeiras do país: o ingresso intenso dos dólares, se ocorrer, valorizará ainda mais o Real frente às moedas estrangeiras com prejuízos para a balança de pagamentos e para as metas fiscais do governo.
Por outro lado, boa parte do dinheiro ilegal já está transitando no país, principalmente no mercado financeiro, sendo duvidoso que os "investidores" queiram oficialmente repatriá-los à custa de entregar uma fatia para a Receita.
Mas nem só de economia vivem as críticas. O moralômetro tem dado sinais de fadiga. Há, por exemplo, uma injustiça fiscal embutida nos projetos. A repatriação do dinheiro gozará, disfarçadamente, de um benefício fiscal.
Quem manteve seus recursos no país teve, em regra, de pagar, a título de imposto de renda, entre 27,5% (pessoa física) e 34% (pessoa jurídica) do que recebeu ou lucrou. Os que remeteram seus valores ilegalmente para o exterior, em contrapartida, pagarão apenas 8% a 15%, conforme o caso.
O mais grave das propostas, entretanto, decorre da impossibilidade prática de distinguir o dinheiro que foi enviado para fora do país por "mera" sonegação e evasão fiscal daquele oriundo da corrupção, do sequestro, do tráfico de pessoas, de armas e entorpecentes e do terrorismo.
Os projetos atribuem essa tarefa de separar o joio do trigo às instituições financeiras. Não é só um paradoxo essa previsão, mas uma inversão das coisas públicas, para não dizer desfaçatez que é muito forte. Os bancos, ávidos por recursos, darão atestado de idoneidade. Mesmo que quisessem cumprir fielmente a tarefa, retirando a pele de lobo, teriam, na melhor das hipóteses, que acreditar na declaração do correntista. E só. A
Receita,
o Coaf ou a
polícia é quem deveria ser encarregado da missão. Mas, aí, frustraria o intento.
Há uma inquietação ainda mais angustiante: o dinheiro sujo, mesmo lavado com o brasão da República, buscará, provavelmente, o retorno vultoso e promissor de novos crimes. Mas esses argumentos não são bastantes para declarar os projetos ou, mais exatamente, a ou as futuras leis inconstitucionais.
A equação dos interesses em conflito parece desajustada em face de alguns princípios constitucionais, embora seja pouco provável que o STF venha a reconhecê-lo em virtude de seus precedentes. A isonomia tributária, por exemplo, é violada, pois há um benefício patente em favor de quem enviou o dinheiro para o exterior em detrimento do contribuinte que honrou seus compromissos fiscais internamente.
Entretanto, o Fisco vive a adotar sistemas de anistias e moratórias, como no Refis (Programa de Recuperação Fiscal), sem que haja, no entender do Tribunal, comprometimento da ordem constitucional. No ponto específico da isonomia, tem-se reiterado o poder de a lei tributária discriminar os contribuintes, por motivo extrafiscal, desde que a distinção seja razoável, aplicando-se, no caso, a todas as pessoas de uma classe ou categoria.(ADIMC 1643/DF e 2031/DF).
Assim também alguns advogam que o princípio da punibilidade, decorrência da garantia institucional expressa da segurança pública e da integridade do Estado, da sociedade e dos indivíduos, bem como dos direitos fundamentais, não teria sido adequadamente levado em conta.
Ocorre que esse princípio, com exceção de algumas determinações constitucionais expressas, está no âmbito de configuração do legislador e da política criminal, não tendo conseguido até hoje a simpatia dos Ministros para revisar as opções legislativas feitas, inclusive no caso do Refis (ADI n. 1571/DF; 1a.Turma. RHC n. 89.618/RJ). Também parece desafiar o perfil do Estado constitucional a delegação do poder de polícia ao próprio mercado, tema que divide a Corte, embora com posições recentes majoritariamente contra essa possibilidade (ADI n. 1717/DF).
Em suma, discricionariedade política e administrativa, associada a interesses constitucionais de equilíbrio fiscal e de desenvolvimento do país, tende a suplantar as normas constitucionais afetadas e mesmo eventuais desconfortos morais com as medidas anunciadas. Não interessam aos juízos constitucionais de adequação as motivações ou determinações psicológicas do legislador, se os argumentos que suportam a legitimidade estão constitucionalmente bem formulados.
Que venham, então, novas anistias, pois o repertório das maldades não tem limites. Ah se o direito fosse ainda moral! E como custa ser moderno!