terça-feira, 16 de novembro de 2010

Réquiem de um amor

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)

Eu tenho nojo de você e tenho nojo de mim por ter suportado esse amor e até de ter também amado. O que ele poderia dizer diante desse decreto? Pensou em responder, mas se limitou a arquear as sobrancelhas. Não sabe bem por que, de repente, pensou naquelas duas estatuetas entrelaçadas que vira no Louvre. Uma vinculada à outra de modo definitivo, pelo mármore e a mão do artista. Diria uma para outra: eu sinto nojo desse seu amor, dessa sua servidão, dessa xifopagia eterna. Teriam dito mesmo isso? Sequer se lembrava se estavam mesmo em Paris ou se foram vistas no Prado. Talvez no MoMA como pedras levemente separadas por traços finos que ora deixavam notar o corpo de cada uma, ora tornavam tudo indistinguível, entremeado como fossem mesmo feitas uma para outra.

De longe se podia notar mais claramente que se abraçavam e se beijavam numa sensualidade que, apesar de pétrea, era comovente. Amor assim não haveria e, no entanto, uma estaria a dizer calmamente para a outra: um nojo. Esqueceu-se tão rápido quanto lembrara da imagem e pensou na princesa persa, bela, formosa, mas que possuía um hálito azedo, talvez produto de uma bactéria sulfurosa que regurgitava no estômago seus vapores fenólicos. Uma princesa persa linda, mas, ao mesmo tempo, um nojo, pois quem se atreveria a beijar aquela boca, quem sequer a ouviria também sussurrar: eu tenho nojo de você e tenho nojo de mim? Pois Eva Brown não suportara a halitose de Hitler, embora o general Johannes Blaschke tenha registrado secretamente as queixas da primeira-dama nazista? Jó confessara: “o meu hálito é intolerável à minha mulher” (19,17).

Poderia ser isso mesmo, ele deveria ter um hálito assim e até bafejou contra a palma da mão aberta entre a boca e o nariz para conferir, mas nada sentira. Vai ver que o olfato se acostumara com o cheiro. Entretanto, dizia de si para si, reconfortando-se, tudo tem um cheiro, tudo tem um jeito, tudo tem uma história que sempre poderá ser estranha ou nauseabunda sob um determinado ângulo, gosto ou pensar. O nojo poderia não ser do hálito, cogitou, mas do hábito ou do caráter. Então seria tão perverso ou pervertido quanto Claudius de Hamlet, Iago de Othelo ou, quem sabe, Mr Hyde de O Médico e O Monstro. Pior: um vilão clichê, meio Dom Juan, metade Casanova, inteiramente avinagrado feito vinho de véspera, aberto e podre.

De sobressalto, deixou de lado Jó, Hitler e os vilões, a princesa e as estatuetas, e imaginou que tudo fora um sonho, um pesadelo, talvez. Não escutara jamais aqueles dizeres. Nojo é a última fronteira da dignidade. De um personagem ou de uma história. Como pode alguém dizer que ama e se enojar de amar, de ter amado? Amor sob condição, amor sob validade curta, amor sem amor, só pode, dizia o abajur com um ar de pai, um abajur que não lançava luz apenas à leitura do livro, mas ao espírito conturbado, à alma dolorida que viajava de Paris a Madrid e Nova York sem sair do lugar, apenas para não ter à lembrança de que as palavras haviam sido ditas de uma boca que antes se calara em sua boca, sem nojo, sem os vapores da princesa persa ou a perversão de Iago, numa xifopagia infinita, mesmo que provisória, temporária, mas tão entranha que, como as estatuetas, confundiam-se.

Fechou o livro que supostamente lia e foi direto para a janela de onde vinha aquele vento oeste, frio e forte que lhe trazia a noite da cidade, onde seu amor, seu ex-amor se perdia à procura de quem sabe outro nojo. Sentiu que seu coração parecia desacelerar ao ritmo de um suor criogênico, o ar a faltar e o estômago convulsionado. Firmou-se na grade da sacada e jura que ouviu o vento soprar: calma, todo enjôo um dia passa. E a dor também. Deixou-se ficar às primeiras réstias da manhã. Pouco se sabe depois disso. De seu enjôo, de seu amor, de sua vida.

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