terça-feira, 20 de março de 2012

Mortos de fome


Todos estão falando da crise da Grécia e do empobrecimento da Europa, mas há uma crise e um empobrecimento muito mais sérios debaixo do tapete.

Pouca gente percebe, mas perto de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo. Isso mesmo, 1 bilhão, segundo a FAO. Paradoxalmente, nunca se produziram tantos cereais quanto hoje. A bagatela de 2,3 bilhões de toneladas por ano, suficiente para alimentar uma vez e meia o número de habitantes do planeta.

A conta não fecha devido à competição e à distribuição dessa comida toda. Menos da metade dela vai realmente para a mesa dos seres humanos. Mais de um terço segue para alimentar os animais e perto de 20% serve de matéria-prima ou de combustível para as máquinas.

Os países ricos, mesmo os "quebrados" europeus, ficam com os alimentos de melhor qualidade e a classe C emergente, principalmente nos BRICS, com o resto. Aliás, o crescimento dessa classe nos últimos anos, segundo o Banco Mundial, provocou uma severa alta nos preços dos alimentos. Esses dois ingredientes somados à reivindicação crescente de melhoria dos produtos agropecuários, à especulação dos mercados de commodities e aos danos das mudanças climáticas, quase sempre subestimados pelos economistas, tem levado a uma espécie de "swap alimentar": alimentam-se porcos em vez de gente.

Porcos dos Estados Unidos e do Brasil; gente da África subsaariana, onde se concentram os principais bolsões da fome. Não é que estejamos tão bem na foto assim. Levantamentos oficiais contabilizaram o ano passado 16,3 milhões de miseráveis, 10,5 milhões deles em condições subumanas no País. Como bem disse uma amiga esses dias, não vivem com ratos, vivem como ratos nos muquifos do sertão, das favelas ou da mata. Os estados da Bahia e do Maranhão são os campeões desse humilhante ranking.

É certo que desde o inicio dos anos noventa, houve redução pela metade no número de pobres no Brasil. Há, porém, uma discriminação invisível embutida nessa relativa conquista: o número dos que vivem sob os auspícios das viúvas da fome, mulheres que, por diversas razões, chefiam sozinhas suas famílias, continuou praticamente o mesmo. Motivo? Os programas de distribuição de renda simplesmente não as viram na geografia famélica [A extrema pobreza é feminina. OBRIG, 2009]. Mas ainda assim estamos melhores do que a África e alguns países asiáticos.


Os desvalidos da globalização só tende a aumentar e a concentrar-se nos guetos do mapa múndi, se não houver um concerto internacional. A fome mata muitas crianças e as que sobram têm dificuldade de aprender. São as sequelas da nova velha divisão internacional da fortuna. Sem educação adequada o destino é a pobreza e a fertilidade.

Estudos, como os realizados por Heck, Schoendorf, Ventura e Kiely [Delayed Childbearing by Education Level in the United States, 1969–1994], e por Currie e Moretti [Mother's education and the intergenerational transmission of human capital: Evidence from college openings], mostram que o índice de natalidade está diretamente relacionado com os níveis de escolaridade. Pais mais educados tendem a ter menos filhos. Os recursos, se não sobram, faltam menos, então. Menos filhos podem significar melhor qualidade de vida e melhor educação, tornando virtuoso o círculo.


É meio malthusiana a análise, mas tem seus acertos. Alguns iluminados, como os autores do Implications of Worldwide Population Growth for U.S. Security and Overseas Interests” (NSSM 200), o famoso “Relatório Kissinger,” e os Le Pens da vida que se multiplicam sem parar, sobretudo em tempo de crise, apresentam propostas nobres para solução do problema: esterilização em massa dos famintos. O pior é que muita gente dá ouvidos a esses desvarios morais. Não há alternativas que não passem por uma redistribuição dos ônus e bônus dessa tal globalização. A questão é: quem efetivamente dará o primeiro passo?

O silêncio tem levado a uma prática tão perversa quanto as sugestões dos Kissingers e Le Pens: quem for pobre que se exploda.

sexta-feira, 16 de março de 2012

STF julga ação mais antiga da Corte


Inconstitucionalidade antiga, muito antiga pode ser sanada pelo fato consumado. É uma das interpretações que se podem extrair da decisão do STF no dia de ontem, 15/3/2012. Leia a notícia do julgamento
Por votação majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente, nesta quinta-feira (15), a ação mais antiga que estava em tramitação na Corte, protocolada em 17 de junho de 1959. Trata-se da Ação Cível Originária (ACO) 79, em que o Tribunal convalidou a concessão do domínio de uma área de 200 mil hectares pelo Estado de Mato Grosso a 20 empresas colonizadoras.
A Corte aplicou o princípio da segurança jurídica para manter a validade da operação, em caráter excepcionalíssimo, pois reconheceu que a operação foi ilegal, por ofender o parágrafo 2º do artigo 156 da Constituição Federal (CF) de 1946, então vigente, que condicionava à prévia autorização do Senado a alienação ou concessão de terras públicas com mais de 10 mil hectares. Pelo artigo 188, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, a área sujeita a prévia autorização foi reduzida para 2,5 mil hectares, porém também a Câmara, além do Senado, deve pronunciar-se.
Situação de fato
Na decisão de hoje, prevaleceu o voto do relator, ministro Cezar Peluso. Embora ele concluísse pela inconstitucionalidade da alienação das terras, pela via de concessão de domínio, sem prévia autorização legislativa, ele ponderou que a situação de fato da área se tornou irreversível. Observou que, hoje, ela é ocupada por cidades, casas, estradas, propriedades rurais, indústrias, estabelecimentos comerciais e de serviços, abrigando dezenas de milhares de pessoas. Por isso, propôs a convalidação da operação, invocando o princípio da segurança jurídica, até mesmo porque as terras foram repassadas pelo estado a colonos, na presunção da boa-fé.
Na decisão ficou claro que ela não implica a legalização da posse de terras localizadas em área indígena, pois essas são de propriedade da União, nem em área de preservação ambiental. Portanto, a decisão de hoje não afeta pleitos formulados nas Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362, 365 e 366, que envolvem terras indígenas. Esta preocupação foi manifestada pela ministra Rosa Weber, relatora da ACO 365, que, diante desse esclarecimento prestado pelo relator, ministro Cezar Peluso, acompanhou o voto dele, pela improcedência da ACO.
A ação
A ação foi ajuizada pela União contra a Empresa Colonizadora Rio Ferro Ltda., a Construções e Comércio Camargo Corrêa S.A. e outras colonizadoras, bem como contra o Estado de Mato Grosso. Pleiteava a nulidade de contratos de concessão de terras públicas, feitos com diversas empresas de colonização, com área superior ao limite então previsto no artigo 156, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1946.
Na ação, a União se reportou ao relatório final de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal, de 2/7/1955, destinada a apurar as alienações ou concessões de terras devolutas pelo Estado de Mato Grosso, que confirmou ter havido concessão de largas porções de terras públicas, com área superior ao limite constitucional, sem prévia autorização do Senado.
O Estado de Mato Grosso contestou as alegações. Sustentou que a cessão das terras estava inserida num projeto de colonização da área, mediante introdução de 300 famílias de pecuaristas e agricultores, além da população do núcleo, cabendo às empresas colonizadoras apenas a execução de trabalhos ou benfeitorias necessárias à vida humana e ao desenvolvimento do lugar.
No julgamento de hoje, o advogado que se manifestou em nome da Construções e Comércio Camargo Corrêa disse que não se tratava de alienação de área superior a 10 mil hectares, pois as concessões teriam sido feitas diretamente pelo governo estadual aos agricultores, e os lotes nunca teriam sido superiores a 1.000 hectares. Ainda segundo ele, as colonizadoras apenas atuaram como intermediárias, não havendo contratos de cessão de terras firmadas entre elas e os agricultores.
Extinção
Em petição datada de 1986, a própria União, autora da ACO,  chegou a pedir a extinção da ação, sem julgamento, alegando não mais existirem os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido. Entretanto, em 1987, requereu a desistência do pedido de extinção do processo, em razão de “fatos supervenientes e conexão de causas”, bem como que o Estado de Mato Grosso fornecesse o nome dos adquirentes de glebas ou lotes localizados nos imóveis questionados. E, ainda em fevereiro deste ano, elaborou memorial reiterando pedido de anulação dos contratos objeto da ação.
Por seu turno, o Estado de Mato Grosso requereu a extinção do processo. Alegou impossibilidade prática de reverter a situação fundiária da área; que não foram cedidos lotes além do limite legal e, portanto, o pedido da União seria inepto, uma vez que a causa de pedir não teria relação direta com a situação dos lotes alienados.
O caso
A ocupação da área ocorreu na esteira da “Marcha para o Oeste”, desencadeada pelo então governo Getúlio Vargas para ocupar o interior do país, cuja população se concentrava, em sua maioria, próxima do litoral. As empresas colonizadoras foram contratadas pelo governo mato-grossense para ocupar a área e efetuar obras e serviços, como a construção de estradas, casas, escolas e demais estabelecimentos para servir as novas comunidades que vinham nascendo, bem como para nelas prestar serviços.


E tais obras, segundo entendimento da maioria dos ministros, não poderiam mais ser revertidas, sendo necessário aplicar o princípio da segurança jurídica para manter a paz e tranquilidade social na área.

Divergência
O ministro Ricardo Lewandowski abriu a divergência, advertindo que uma decisão pela improcedência da ação representaria a legalização de latifúndios além das dimensões permitidas.
Ele disse que a área em questão envolve 40 mil quilômetros quadrados, equivalente a duas vezes a extensão do Estado de Sergipe. Lembrou que Mato Grosso tem problemas fundiários (mais de 8 mil latifúndios ocupando 69% da área agricultável do estado), problemas ambientais e de fronteiras. O ministro fez considerações acerca da dimensão da área ilegalmente alienada, apesar da situação lá consolidada, e observou que caberia aos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (surgido após o início deste processo) resolver a situação decorrente de uma eventual anulação dos atos de alienação.
Também os ministros Marco Aurélio e Ayres Britto divergiram da maioria. O primeiro manifestou sua estranheza por considerar que a Constituição Federal não reflete um documento rígido, mas flexível, que deva ser colocada em plano secundário ante uma situação de fato, em detrimento de princípios constitucionais.
No mesmo sentido se manifestou o ministro Ayres Britto, por considerar que a causa está “envolta em nebulosidade sobre a ambiência dessas terras públicas”, ocupadas por grandes empresas, estrangeiros e ONGs. Ele também considerou obscura a própria natureza jurídica dos atos celebrados.


O ministro Cezar Peluso observou, em resposta, que, para os latifúndios improdutivos, da mesma forma que para a área indígena, existe legislação própria de que o governo poderá valer-se em tais casos, e que a decisão de hoje. 


Fonte: STF 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Arbitragem em xeque


Dois recentes casos envolvendo grandes corporações nacionais colocaram em xeque o uso da arbitragem como meio de solução de conflitos entre empresas. A disputa societária entre as famílias Odebrecht e Gradin e a briga entre o empresário Abílio Diniz, dono do Pão de Açúcar, e o seu sócio Casino levantaram dúvidas no mercado sobre a eficiência desse mecanismo em eventuais discordâncias entre as partes envolvidas.
A possibilidade de uso da arbitragem para a solução de conflitos entrou em vigor no Brasil em 1996, quando foi permitida por lei. A partir daí, passou a ser amplamente usada pelas empresas nacionais e estrangeiras com negócios no país para evitar a morosidade do Poder Judiciário. Hoje, a maior parte dos acordos de acionistas das empresas inclui cláusulas de arbitragem, o que garante maior segurança jurídica aos investidores.
Fontes do mercado financeiro e advogados ouvidos pelo Valor defenderam a arbitragem como a forma mais segura de se resolver conflitos em um ambiente empresarial. Essas mesmas fontes informaram que ainda é cedo para saber se os dois casos recentes podem comprometer futuros investimentos no país, mas acreditam que, em geral, as empresas que desrespeitam o mecanismo quando previsto nos contratos podem ter sua imagem abalada. "Esses casos começaram a criar um clima de insegurança em relação à ferramenta", afirma uma fonte à reportagem. "Como assim, vendeu e não entregou?", disse, referindo-se ao caso Pão de Açúcar. "Fundos de investimentos estrangeiros começaram a ligar para entender o que estava acontecendo. Isso gera dúvidas sobre a segurança jurídica em relação aos contratos."
Segundo essa mesma fonte, que trabalha em um banco de investimentos e preferiu não se identificar, na hora em que as pessoas começam a ouvir casos como os que envolveram o Pão de Açúcar e o Casino e as famílias Odebrecht e Gradin começam a se perguntar "se as cláusulas de arbitragem inseridas em seus contratos têm mesmo validade". De acordo com a fonte, recentemente um advogado estrangeiro optou por inserir, no contrato em negociação, uma cláusula estabelecendo que ele seria regido pela legislação de Nova York e que, no caso de conflitos, eles seriam julgados pela Justiça americana. "A arbitragem é até hoje contestada, e agora surgiram esses casos", diz. "O risco agora é o de jogar a arbitragem no lixo."
Para a advogada Ana Claudia Pastore, vice-presidente do Conselho Arbitral do Estado de São Paulo (Caesp), a inserção de cláusulas de arbitragem é uma alternativa à Justiça estatal. "Empresas estrangeiras, de uma maneira geral, sempre tiveram receio de fazer investimentos no país por conta dos problemas legais", afirma. O mercado, segundo ela, poderá não entender a mensagem passada por uma empresa que estabelece regras incluindo cláusula de arbitragem, mas acaba voltando atrás. "Isso cria um clima de instabilidade", diz Ana Cláudia. "Caso se decida pelo uso da Justiça estadual, pode-se gerar uma interpretação, para o mercado, de um ambiente de insegurança e instabilidade."
No processo em curso na Justiça da Bahia, a Kieppe argumenta que a arbitragem é apenas uma das possibilidades previstas no acordo de acionistas. A empresa anexou ao processo três pareceres encomendados aos juristas Humberto Theodoro Júnior, Cândido Rangel Dinamarco e Nelson Nery Júnior em que eles corroboram sua tese de que o uso do método não é obrigatório, e que a via judicial é uma alternativa.(CP e MS)

Carta não autoriza STF a criar norma, diz Moreira Alves


Leia a reportagem do Valor Econômico que traz a opinião do ex-Ministro do STF, Moreira Alves, publicada em 23/08/2011
Por mais de duas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi conhecido como a Corte de José Carlos Moreira Alves. Aposentado desde 2003, o jurista constatou que o STF se tornou outro tribunal. Está mais político do que em seu tempo, mudou orientações em relação a outros Poderes, como o Congresso, passou a dar sentenças em que acrescenta regras para o cumprimento de suas decisões e, para completar, se informatizou, fazendo com que os ministros tomem decisões através de senhas eletrônicas.
"Hoje, o STF está adotando uma posição mais política do que antigamente", afirmou Moreira Alves, numa rara entrevista. Em mais de 27 anos no Supremo, Alves defendeu muitas teses fortes. Uma delas era justamente a de que o juiz não deve falar com a imprensa; apenas nos autos dos processos. Aos 78 anos, ele quebrou essa regra por 20 minutos ao aceitar conversar com o Valor, no dia 11 de agosto, após receber o título de doutor "honoris causa" da Escola de Direito de Brasília (EDB) das mãos do ministro Gilmar Mendes.
Outra tese que foi fielmente seguida pelo STF de Moreira Alves era a de a Corte não criar ou indicar normas, caso o Congresso demore para aprovar leis. O tribunal simplesmente ultrapassou o semáforo dessa regra, em 2007, quando decidiu que, na falta de aprovação pelo Congresso de uma lei sobre a paralisação do trabalho pelos servidores públicos, eles teriam de seguir a lei de greve do setor privado. No início deste ano, nova ultrapassagem quando o STF decidiu que, sem lei para o aviso prévio, a própria Corte vai definir critérios para fixar um novo prazo para o benefício que será superior aos 30 dias atuais.
O Supremo tornou-se ativista? "Esse é o tal problema", responde Moreira Alves. "Ao se elaborar uma lei ou ao se indicar quando ela será aplicada, se conduz a um poder político de dizer: a normatividade é essa."
Alves explicou que, antes, ao receber pedidos judiciais para que o Congresso aprove uma lei, o STF apenas fazia uma comunicação aos parlamentares de que eles estavam demorando para garantir um direito à população. Esses pedidos são chamados formalmente de mandados de injunção. "Eu sempre disse que o mandado de injunção é um instituto que, na realidade, não tinha possibilidade de criar normas, mas era apenas um alerta que se dava ao Congresso Nacional para que ele criasse as normas", disse Alves.
"No meu tempo não havia isso (ativismo judicial); mas vão dizer que estou velho e não compreendo os temas novos"
Hoje, os mandados de injunção ganharam uma nova força, pois há sempre o risco de que, ao julgá-los, a Corte pós-Moreira Alves indique uma nova lei a ser aplicada ou fixe novas regras que não foram aprovadas pelo Parlamento. "É a própria Constituição que declara que, na ação de constitucionalidade por omissão [dos parlamentares], se faça comunicação ao Congresso. Mas não diz lá que se faça norma para substitui-lo ou para atuar no mundo da lei."
Outro tipo de decisão, que não existia na época de Moreira Alves é a sentença aditiva - quando o tribunal acrescenta regras à lei para que uma decisão seja cumprida. Isso aconteceu em pelo menos dois grandes casos recentes: no julgamento que autorizou pesquisas com células tronco, pois o tribunal criou um novo estatuto para a realização dessas pesquisas, e na demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, quando os ministros fixaram novas condições para que a terra fosse devolvida para os índios.
"No meu tempo, não havia isso", pontuou Alves. "Vão dizer: o homem está velho e não tem compreensão dos temas novos", continuou.
Sobre o novo papel do STF, disse que "é um papel irreversível". "Essa orientação, hoje, é amplamente predominante. A diretriz dada pelo tribunal é exatamente a de suprir as lacunas [de leis] sejam elas totais ou parciais."
O STF está, hoje, mais preocupado em resolver grandes questões do país e, por isso, passou a indicar qual é o direito a ser aplicado mesmo na falta de leis? "O problema aí é saber justamente se a Constituição outorga esse poder ou se ele foi criado pelo tribunal", constatou Alves. "Se foi criado pelo tribunal, é uma tendência. E sendo uma tendência da grande maioria, ela deve ser seguida, até porque há uma modificação na orientação da Corte."
Alves não se sentiu confortável ao falar dessa nova orientação do STF. Para ele, não há novidade no fato de que, ao decidir, o tribunal cria um novo direito. "Toda a decisão judicial não deixa de ser no fundo a criação de um direito", disse. Segundo ele, o que há de diferente é a intensidade dessa criação, pois o STF está criando direito novo em vários temas.
"Mas, a minha formação não foi essa. Ela foi mais jurídica e, por isso, sempre procurei dar às minhas decisões um fundamento jurídico. Agora, evidentemente, com a mudança de orientação é difícil a gente estar fora do tribunal e dizer se deve criticar ou não. Confesso que não gosto de falar sobre novos colegas ou de novas orientações até porque parece que temos um saudosismo penitente ou, então, nos tornamos um progressista que só se tornou progressista quando deixou o tribunal."
Para o ex-ministro, o grande desafio do STF é ficar num terreno que seja razoável, e não começar a criar normas absolutamente novas em matéria de direito. Ele reconheceu que essa tarefa é difícil, ainda mais diante de questões muito populares, como união homoafetiva e cotas raciais em universidades.
"São questões constitucionais. No problema da união estável, a Constituição diz que é do homem com a mulher. Portanto, é preciso saber se é só essa [união] ou se há outras. O mesmo ocorre com as cotas: é preciso saber se é possível se afastar o princípio do mérito tendo em vista o problema das cotas raciais e até mesmo sociais. É um problema realmente delicado, pois daqui a pouco vai haver até para os brancos e para os não inteligentes."
Alves foi sucedido no STF pelo ministro Joaquim Barbosa, relator do mensalão. "Tivemos um só caso parecido com esse, que foi o caso Collor", lembrou. "Eram 140 volumes. Impossível de se ler tudo." O ex-presidente Fernando Collor foi absolvido pelo STF e, hoje, é senador. O ex-ministro disse que o caso do mensalão pode trazer novamente para a Corte "o problema de se decidir sobre aquilo que foi lido por terceiros". Hoje, o processo está com 44 mil folhas divididas em 210 volumes e 484 apensos.
Alves recordou-se que, durante uma discussão sobre a necessidade de o Senado aprovar algumas orientações dadas pelo STF, ele defendeu que o tribunal não poderia emitir meras opiniões ao Parlamento. "Sustentei ideias que eram difíceis naquele momento e ainda disseram que eu era conservador." Na ocasião, ele disse que o STF se tornaria um "órgão lítero-poético-recreativo", pois apenas faria manifestação para, depois, o Senado decidir. "Aquele passo foi importantíssimo", disse Gilmar Mendes, que utilizou a mesma expressão durante o julgamento do italiano Cesare Battisti para criticar a decisão em que o tribunal permitiu que o presidente da República desse a palavra final em casos de extradição. "Aquele episódio envolvendo o Senado deu força para a Adin", completou Mendes, referindo-se à ação direita de inconstitucionalidade pela qual o STF pode derrubar leis aprovadas pelo Parlamento.
Para Moreira Alves, o STF está passando por "modificações rápidas demais". Mas, as suas memórias da Corte continuam muito boas. "Afasto qualquer ideia que não seja agradável das demais. Fui ministro por 27 anos e dez meses, sem ter nenhum apoio político de qualquer órgão ou pessoa."
Alves foi nomeado pelo presidente Ernesto Geisel para o STF, em 1975, e guarda até hoje a frase que ouviu ao ser indicado. "O presidente disse que fui nomeado tão moço que o tribunal ficaria cansado de mim."
Oito anos depois de sua aposentadoria, o ministro enxerga o STF como "uma Corte abastada da realidade política".
Por Juliano Basile

Patentes, pirataria e servilismo

Rogério Cezar de Cerqueira Leite escreveu um bom artigo sobra a política nacional e internacional das patentes. Na Folha de 7/11/2011.


Na década de 1970, os EUA, com o auxílio de alguns países europeus, patrocinaram violenta campanha mundial em favor da adoção, pelos países em desenvolvimento, de legislações patentárias que incluíssem medicamentos e alimentos que, até então, por serem itens considerados essenciais para a sobrevivência, eram excluídos.


Vamos, pois, rever os argumentos utilizados a favor da adoção de uma legislação patentária. Esses derivam de três vertentes principais:

1) O inventor deve ser recompensado de seu esforço e talento;
2) A criação de um monopólio, uma reserva de mercado, promove investimentos e, portanto, a produção de bens;
3) A existência de legislação patentária é um estímulo à inovação.

A ideia de retribuição apela aos nossos sentimentos românticos, pois ainda retemos em nossa memória a imagem do inventor solitário, cabelos longos, olhos esbugalhados, ligeiramente doidivanas, porém inofensivo.

Mas essa é uma espécie extinta. O proprietário da patente é hoje uma grande corporação ou instituição, pois o benefício é para quem paga o salário do inventor.

Os EUA, seguindo o exemplo dos países europeus, mudaram recentemente sua legislação sobre propriedade intelectual de maneira drástica e desconcertante.

A patente passa a ser concedida a quem pedir o registro, e não a quem inventa, ou descobre, ou desenvolve o produto.

Com isso, se consagra, pelo menos do ponto de vista dos EUA, o conceito de que a patente é unicamente um mecanismo de estímulo à produção. E não é mais estímulo à inovação nem retribuição.

Cai por terra qualquer conceito de justiça, de moral, de direito. Com que cara vão ficar os apoucados que chamaram de "pirataria" a defesa de interesses nacionais diante dos excessos contidos na legislação patentária imposta ao Brasil pelos EUA (ditada em Washington pelo Departamento de Comércio daquele país a dois eméritos ministros brasileiros durante o governo Collor).

Nessa nova forma, o princípio pragmático que orienta a legislação patentária americana é mais um incentivo à espionagem industrial do que à inovação. E não há dúvida de que logo será seguido o exemplo dos EUA pelos países que ainda insistem na fórmula que diz que o privilégio é de quem inventa.

Ora, se o registro de uma patente serve apenas ao interesse do Estado em promover a produção de um bem pela concessão de reserva de mercado, então, essa concessão deve ser avaliada caso a caso. Deve deixar de ser um direito do proponente, a quem atualmente basta seguir certas regras burocráticas.
E seria, pois, desejável que incluísse uma planilha de custos para que preços possam ser estabelecidos, sem que haja prejuízos para o cidadão. Como também deve a duração do monopólio ser negociada.



Não devemos esquecer o que foi verificado pela “Comissão Churchill” do Senado americano, ou seja, que "95% dos registros de patentes no México, Brasil e Argentina serviam para impedir a produção, não para incentivá-la". 

terça-feira, 13 de março de 2012

A insustentável leveza de ser Supremo (O caso Instituto Chico Mendes)


Para conter o abuso da edição das medidas provisórias, pela caneta solitária mais poderosa da República, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 32 em 11/9/2001. Entre os limites impostos pela Emenda havia a disciplina do rito de conversão das MPs em lei, prevista no § 9º do artigo 62: “Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.”

Em 8/5/2002, o Congresso baixou a Resolução n. 1, estipulando prazo improrrogável de 14 dias para a comissão mista apresentar parecer, sob pena de análise de a conversão iniciar-se pela Câmara dos Deputados, bastando o parecer individual do relator designado, vale dizer, sem manifestação da comissão mista (art. 5º, caput; art. 6º, §§ 1º e 2º). Esse dispositivo virou moda: todas as MPs passaram a ser debatidas da Câmara, sem manifestação do colegiado.

Em 26/4/2007, a MP nº 366 criou Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, ...

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domingo, 11 de março de 2012

As firulas neurológicas da precocidade

Há um bom texto de George Steiner, publicado na Folha de hoje, sob o título "A morte dos reis", sobre a precocidade de alguns humanos notáveis no campo da música, da matemática e do xadrez. Haveria alguma explicação para o fenômeno? Leia um trecho do artigo de Steiner:


"Existem três atividades intelectuais, e até onde sei apenas três, em que os seres humanos conseguem realizar grandes proezas antes da puberdade. São a música, a matemática e o xadrez. Mozart escreveu composições de inquestionável encanto e competência antes dos oito anos de idade. [Mozart aprendeu desde os quatro anos teclado, com cinco iniciou no violino e órgão, e já passou à composição]. Aos três anos, Karl Friedrich Gauss realizava cálculos numéricos de razoável complexidade; demonstrou-se matemático prodigiosamente rápido, mas também muito profundo, antes dos dez anos. Com 12 anos, Paul Morphy derrotou todos os concorrentes em Nova Orleans -façanha nada pequena numa cidade que, cem anos atrás, contava com vários enxadristas excelentes.


Estamos aqui lidando com alguma espécie de elaborado reflexo de imitação, com feitos que estariam ao alcance de autômatos? Ou esses maravilhosos seres em miniatura realmente criam? As "Seis Sonatas para Dois Violinos, Violoncelo e Contrabaixo" que Rossini compôs durante o verão de 1804, aos 12 anos, têm a visível influência de Haydn e Vivaldi, mas as principais linhas melódicas são de Rossini e mostram uma bela criatividade.



Também aos 12, Pascal parece ter recriado sozinho, por conta própria, os principais axiomas e proposições iniciais da geometria euclidiana. Os primeiros jogos registrados de Capablanca e Alekhine contêm ideias significativas e mostram marcas de estilo pessoal. Nenhuma teoria dos reflexos pavlovianos ou da imitação simiesca explica os fatos. Nos três campos encontramos criação, não raro original e memorável, numa idade fantasticamente precoce.



Há explicação? Procuramos alguma relação genuína entre as três atividades: quais as similaridades entre a música, a matemática e o xadrez? É o tipo de pergunta que deveria ter uma resposta clara -e até consagrada. (A ideia de que realmente existe uma profunda afinidade não é nova.) Mas não se encontra muita coisa além de vagas sugestões e metáforas".



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domingo, 4 de março de 2012

Criatividade individual e criação coletiva - a fonte das boas ideias

Na linha da "Mitologia das ideias", de Schwartsman, as ideias boas não dão em frutos. Nem decorrem de ambientes coletivos acríticos nem em mônadas de introvertidos.

Brainstorm

O (...) conceito surgiu no livro "Your Creative Power" (Myers Press). Nesta obra de 1948, ainda em catálogo, o publicitário norte-americano Alex Osborn, sócio da mítica agência BBDO, prometia dobrar o poder criativo do leitor.

O livro (...) trazia conselhos como "carregue sempre um caderninho, para não ser surpreendido pela inspiração". O ponto alto, contudo, estava no capítulo 33, intitulado "Como organizar um esquadrão para gerar ideias". Osborn dizia que o segredo do sucesso de sua agência eram as sessões de "brainstorming", nas quais uma dezena de publicitários se reunia por 90 minutos e saía com 87 novas ideias para uma "drugstore".


A principal regra de um "brainstorming" era "não critique o companheiro". Para Osborn, "a criatividade é uma flor tão delicada", que precisa ser alimentada com o louvor e pode ser destruída por uma simples palavra de desencorajamento. A coisa pegou como uma praga. Osborn escreveu vários outros "best-sellers" e virou guru da literatura de negócios. Os pedagogos também adoraram e até hoje nossos filhos perdem precioso tempo na escola se dedicando a atividades de grupo onde o mantra é jamais criticar o coleguinha, mesmo que ele diga uma tremenda besteira.



O principal problema com o "brainstorming" é que ele não funciona. Como mostra [Jonnah] Lehrer [The brainstorm myth], o conceito fracassou já em seu primeiro teste empírico, em 1958. Pesquisadores da Universidade Yale puseram dois grupos de 48 estudantes para propor soluções criativas para uma série de problemas. No primeiro, os voluntários atuariam segundo as instruções de Osborn; no segundo, cada aluno trabalharia sozinho. Estudantes que operaram individualmente apresentaram, em média, duas vezes mais propostas que os do "brainstorming". Mais ainda, um comitê de juízes considerou essas contribuições melhores e mais factíveis que as do primeiro grupo.

Outra noção popular e errada é a de que laboratórios e escritórios devem ter uma arquitetura que praticamente obrigue as pessoas a interagirem, favorecendo "insights" criativos. Essa moda derrubou muitas paredes, e grandes empresas se tornaram um imenso átrio, onde todos se encontravam o tempo inteiro. Estima-se que cerca de 70% dos escritórios dos EUA sigam esse padrão. Um dos maiores entusiastas do conceito de arquitetura de plano aberto era Steve Jobs, da Apple.

O poder individual

Como mostra Susan Cain, no recente  "Quiet: The Power of Introverts in a World that Can't Stop Talking", a relação entre interações sociais e boas ideias é mais sutil. Num estudo chamado "Coding War Games", Tom Demarco e Timothy Lister avaliaram a performance de 600 programadores de informática de mais de 90 companhias.

A diferença entre os profissionais era impressionante: o desempenho do melhor superou o do pior em dez vezes. E, para tornar as coisas mais misteriosas, as causas suspeitas de sempre -como experiência, salário, tempo dedicado à tarefa- não explicavam o fenômeno.

Demarco e Lister, entretanto, perceberam que os melhores programadores tendiam a agrupar-se nas mesmas firmas. Investigando essa pista, descobriram que o segredo era a privacidade: 62% dos que se saíram bem disseram que seu lugar de trabalho oferecia um ambiente reservado onde podiam se concentrar, contra apenas 19% dos que tiveram pior performance.

O objetivo de Cain, nesse interessante livro que pretende ser uma espécie de manifesto de libertação dos introvertidos, é demonstrar que as pessoas precisam respeitar seu temperamento. Especialmente para os tímidos, em geral super-representados nas carreiras científicas, o excesso de interações sociais é amedrontador. Eles se saem melhor em ambientes mais tranquilos, onde sua atenção não seja requisitada para desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo.

O problema, sustenta a autora, que largou a advocacia para dedicar-se ao estudo da introversão e à orientação para tímidos, é que o mundo -o Ocidente em especial- abraçou uma cultura da personalidade, cujos valores são ditados por um ideal de extroversão. Quem não consegue ou não gosta de falar em público e motivar as pessoas já sai perdendo pontos na carreira e na própria vida.

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Junto e misturado

Embora as pessoas de um modo geral trabalhem melhor sozinhas (especialmente os introvertidos), a criação continua sendo um processo coletivo. Na verdade, cada vez mais coletivo. (...)  Embora não exista receita para ter boas ideias, é possível melhorar seu desempenho se conseguir trabalhar num ambiente que lhe proporcione privacidade e o poupe de interrupções. Normalmente, é melhor estar sozinho, mas sem jamais se alijar dos debates travados em seu campo de atuação.


Quando precisar juntar colaboradores, mais vale reunir grupos heterogêneos, com um número razoável de pessoas "do contra". Eles reduzem os riscos das patologias da conformidade. Em vez dos elogios, prefira as críticas. Apesar de desgastantes, são elas que vão ajudá-lo a melhorar suas ideias. E, mais importante, não acredite em fórmulas prontas.

Patologias das multidões

Ainda trechos de Hélio Schwartsman, em "A mitologia das ideias", revelam as patologias das multidões e os efeitos manadas:.



A linha que separa a sabedoria das multidões dos delírios coletivos é tudo menos nítida. Como mostra toda uma linha de pesquisas iniciada por Irving Janis, da Universidade Yale, nos anos 70, grupos incubam uma série de patologias do pensamento.


A primeira delas é a polarização. Junte um punhado de gente com opiniões semelhantes, deixe-os conversando por um tempo e o grupo sairá com convicções mais parecidas e mais radicais. Provavelmente é assim que nascem facções como o Tea Party, que reúne ultraconservadores radicais nos EUA, e até mesmo organizações terroristas. O advento da internet e das redes sociais pode estar facilitando a formação desses bandos.


A animosidade é outro elemento importante. Ponha um corintiano e um palmeirense para discutir futebol numa sala. Eles discordarão, mas provavelmente se tratarão com civilidade. Entretanto, se você colocar cem de cada lado, quase certamente produzirá xingamentos e até pontapés, quando não tragédias. 




Há, por fim, a conformidade. Grupos tendem a suprimir o dissenso. Mais do que isso, procuram censurar dúvidas que um dos membros possa nutrir e ignorar evidências que contrariem o consenso que se forma. É esse o segredo do sucesso das religiões.


Nesse contexto, são especialmente divertidos os experimentos do psicólogo Solomon Asch [v. "Opjnion and social pressure". Scientific American, v. 193, n. 5, 1955, p. 31-35]. Ele submeteu 123 voluntários a um teste tão ridiculamente fácil que ninguém poderia errar: exibia para eles um cartão que trazia estampada uma linha com determinado comprimento. Em seguida, num segundo cartão, apareciam três linhas marcadas com letras de A a C, umas com medidas bem diferentes das outras. A missão era identificar a letra cuja linha era igual à do primeiro cartão. Em 35 tentativas, apenas um infeliz deu a resposta errada.

Mas (sempre há um "mas" em ciência), quando o pesquisador pôs comparsas seus para dar propositalmente respostas erradas antes do voluntário, a taxa de acertos despencava de 97% para 25%. Resultados parecidos foram reproduzidos em no mundo inteiro. As incursões de Asch pelos perigos da conformidade inspiraram outros experimentos famosos, como os de Stanley Milgram [The Perils of Obedience, 1973, v. slides em aqui] (no qual, pressionadas por um pesquisador, as cobaias não hesitam em dar choques que acreditam ser quase fatais num ator) e de Phil Zimbardo ["The  Past  and  Future  of   U.S.   Prison  Policy".  American Psicologist, v. 53, n.  7, p. 709-727 (ele simulou uma prisão num porão da Universidade Stanford, e os voluntários que faziam o papel de guardas se tornaram tão violentos que a encenação teve de ser interrompida).


A profilaxia do mal - o chato


Como mostram Ori e Rom Brafman em  "Sway: The Irresistible Pull of Irrational Behavior", a existência de pessoas "do contra" ("dissenters", em inglês) são nossa melhor esperança.

Embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, a figura do "dissenter" costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados, comissões legislativas e na própria ciência. É praticamente o inverso de um "brainstorming", onde a regra era não criticar.

O "do contra" aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho. O diálogo, vale frisar, nem precisa ser ao vivo. É preciso criar mecanismos que questionem os consensos.

Neurociência e a argumentação

Hélio Schwartsman resumiu algumas boas ideias em "A mitologia das ideias", publicada na Ilustríssima de 4/3/2012. Destaco alguns trechos importantes para registro, acrescentando aspectos teóricos e bibliografia.

A razão é darwiniana

Hugo Mercier e Dan Sperber ["Why do humans reason? Arguments for an argumentative theory". Behavioral and Brain Sciences, v. 34, 2011, p. 57-111] (...) sustentam que a razão humana evoluiu - não para aumentar nosso conhecimento e nos aproximar da verdade, mas para nos fazer triunfar em debates. A teoria, dizem os autores, não só faz sentido evolutivo como resolve uma série de problemas que há muito desafiavam a psicologia: os chamados vieses cognitivos. 

Um viés cognitivo é um padrão de desvio no julgamento humano, ocorrente em determinadas situações, levando a distorções perceptivas, a conclusões imprecisas, a interpretações ilógicas ou a outras manifestações do que se denomina irracionalidade (HASELTON, Marti G.; NETTLE, ANDREWS, Paul W. Daniel "The evolution of cognitive bias" In BUSS, D.M. (ed.). Handbook of Evolutionary PsychologyHoboken: John Wiley and Sons, 1991, p. 724, ss; ARIELY, Dan. Predictably irrational: The hidden forces that shape our decisions. New York: HarperCollins, 2008 )

Segundo Robert Wright, em "Animal Moral" (Campus BB, 2005, esgotado): "O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude".


O viés de confirmação: Julgamos com os nossos preconceitos


Embora tenhamos nos acostumado a pensar que tomamos decisões pesando prós e contras de cada uma das alternativas possíveis e extraindo com base nisso uma conclusão, o que os estudos psicológicos e neurocientíficos mostram é que, na maioria das ocasiões, a parte inconsciente de nossa mente chega de imediato a uma conclusão, por meio de sentimentos, palpites ou intuições. Neste instante, são os vieses cognitivos que estão operando. Em seguida, a porção racional de nosso cérebro se põe a procurar e elaborar argumentos racionais (ou quase) para justificar essa conclusão. É muito mais uma conta de chegada do que um cálculo honesto. 

Experimentos

O psicólogo Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, resolveu espalhar 240 carteiras pelas ruas de Edimburgo. Elas não continham dinheiro, apenas documentos de identidade, cartões de fidelidade, bilhetes de rifa e fotografias pessoais. A única variação eram as fotos. Algumas das carteiras não tinham foto nenhuma e outras traziam imagens que podiam ser de um casal de velhinhos, de uma família reunida, de um cachorrinho ou de um bebê. 

A meta do experimento era descobrir se a fotografia afetaria a taxa de devolução das carteiras. Num mundo perfeitamente racional, a imagem seria irrelevante. Devolve-se o objeto perdido porque é a coisa certa a fazer. O trabalho de colocá-lo numa caixa de correio não é tão grande assim, e é o que gostaríamos que os outros fizessem, caso nós é que tivéssemos perdido os documentos. É claro, porém, que as fotografias influíram nos resultados. Foram devolvidas apenas 15% das carteiras sem foto, pouco mais de 25% das que traziam a imagem dos velhinhos, 48% das da família, 53% das do filhotinho e 88% das do bebê.

Veja o blog de Wiseman aqui

O neurocientista norte-americano Michael Gazzaniga trabalha bem essa questão. Ele identifica no hemisfério esquerdo estruturas que buscam dar sentido ao mundo. O pesquisador as chama de "intérprete do hemisfério esquerdo". É ele que busca desesperadamente um significado unificado a todas as nossas experiências, memórias e fragmentos de informação. Ele nos faz deixar de ver as evidências que não nos interessam e atribui enorme peso a tudo o que apoia a nossa tese. Quando a história não fecha, pior para a verossimilhança: o intérprete não hesita em criar desculpas esfarrapadas e explicações que beiram o delírio.