domingo, 28 de agosto de 2011

Marx explica o século XXI

Bom texto de Toledo Jr, publicado pela Folha de S.Paulo de 28/8/2011, que, a pretexto de fazer uma resenha de textos atuais sobre a atualidade das teses marxistas, traz uma boa análise da realidade atual. De volta para o futuro. Marx consegue dar conta do século XXI?
As recentes crises financeiras mundiais e as transformações no comércio, na produção e no mercado de trabalho põem à prova o marxismo, teoria que vicejou nos séculos XIX e XX para ter sua morte (ou crise) decretada na virada do século XXI. Livros aproximam a economia atual da era vitoriana, que inspirou "O Capital". A artigo é de Joaquim Toledo Jr. e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-8-2011. Em comentáio publicado em 8 de agosto de 1853, o correspondente internacional do "New York Tribune" Karl Marx (1818-83) concluía que o desdobramento necessário do colonialismo britânico no subcontinente indiano seria o cumprimento de duas missões: "uma destrutiva, a outra regenerativa - aniquilar a velha sociedade asiática e estabelecer os fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia". À luz das sensibilidades contemporâneas, a afirmação surpreende pela aparente defesa do sistema colonial do século XIX - fundado em relações comerciais impostas pelo poder de intimidação da esquadra inglesa, como o próprio Marx apontou em seus artigos sobre os britânicos na China. Surpreende também a aparente confiança nos benefícios da presença britânica na Índia: a imposição de unidade política ao subcontinente ("a primeira condição para sua regeneração"), sua inserção no circuito comercial europeu (que o salvaria de sua "posição isolada, o motivo maior de sua estagnação"), a construção de ferrovias, linhas telegráficas e sistemas de irrigação, o estabelecimento de indústrias. Marx saudava, ainda que sem ilusões, a incubação de um processo de modernização que, embora fosse do interesse dos colonizadores, não deixaria de beneficiar os colonizados. Apesar de essa regeneração ainda não estar visível em meio às ruínas da sociedade indiana tradicional, para Marx, no entanto, ele "já havia começado". Um aparente escorregão daquele que é, muito provavelmente, o maior crítico da modernidade capitalista: confiar em benefícios colaterais de uma relação desigual de exploração e apostar na força progressista da "modernização capitalista". FILHO REBELDE Essa ambiguidade é prova de que a obra de Marx é manifestação do que se convencionou chamar de "dialética da modernidade", da qual o próprio pensador e a tradição que fundou oferecem a teoria mais completa e a crítica mais incisiva. Filho rebelde do liberalismo e do iluminismo europeus, o marxismo tem oferecido nos últimos 160 anos o instrumental teórico mais sofisticado para a compreensão da natureza contraditória da sociedade moderna. Como lembra o sociólogo sueco Göran Therborn ["From Marxism to Post-Marxism?", Verso Books, 208 págs., R$ 37], o marxismo sempre afirmou os traços progressistas do capitalismo, da industrialização e da urbanização, enquanto denunciava a "exploração, a alienação, a ubiquidade da forma mercadoria, a instrumentalização das relações sociais, a falsa ideologia e o imperialismo" inerentes ao processo de modernização. Repensar o marxismo hoje pressupõe atualizar essa interpretação crítica da sociedade capitalista contemporânea em dois registros, antagônicos mas complementares: reconhecer e ampliar os avanços tecnológicos, culturais, políticos e sociais que acompanham o desenvolvimento econômico capitalista - ou sobrevivem a ele - e seus efeitos destrutivos. ESPAÇO GLOBAL Para Therborn, o marxismo precisa dar conta de uma dimensão tradicionalmente marginal no próprio Marx e no marxismo em geral: o espaço do processo (desigual) de acumulação capitalista. Não é de hoje que esse é um espaço global, como já notaramMarx e Engels (1820-95) em seu "Manifesto Comunista" (1848); mas a conectividade global contemporânea é de uma densidade sem precedentes. O espaço socioeconômico, cultural e geopolítico do século XXI é "radicalmente diferente daquele do século XX", que foi, acima de tudo, o último século eurocêntrico. O cenário geopolítico do século XXI, por sua vez, é mais aberto e descentralizado, e o poder militar norte-americano, hegemônico desde o desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-45), está hoje em descompasso com a emergência de potências econômicas, na Ásia mas também na América Latina, e com o surgimento de uma "nova rede de Estados nacionais" e a intensificação das relações sul-sul. CAPITALISMO LIBERAL Essa reconfiguração, sinal da diminuição das disparidades de influência política e força econômica entre regiões e nações, convive, no entanto, com o aumento global da desigualdade de renda e com a desarticulação da classe trabalhadora, na qual não só a teoria como a prática política marxista haviam depositado suas esperanças. Nesse sentido, o que parece que vivemos nesse começo do século XXI é um retorno ao capitalismo liberal do século XIX. Para Fredric Jameson, a crise atual pede uma releitura de "O Capital" (1867), a grande obra teórica de Marx. Em seu trabalho mais recente, "Representing 'Capital' - A Reading of Volume One" [Verso Books, 176 págs., R$ 55,70], o teórico norte-americano remexe as cinzas desse que é sem dúvida um dos maiores feitos intelectuais de seu século e investiga duas de suas dimensões fundamentais. Uma é formal - entender como Marx consegue oferecer uma representação (teórica, mas que lança mão de recursos literários de figuração, a que Jameson chama "protonarrativos") da "totalidade do sistema capitalista". "O Capital" resultaria de um "tour de force" de composição não muito diferente daquele que animou o projeto da "Comédia Humana" de Honoré de Balzac (1799-1850): representar, com os meios limitados da exposição teórica na forma de um quase "tratado" (e de sua prima-irmã, a narrativa realista), um sistema em que cada uma das partes remete a todas as outras, e na qual qualquer ponto pode ser tomado como início ou como fim. Da mesma forma, o escritor francês procurou retratar, com seu conjunto de romances, a totalidade da complexa sociedade francesa da Restauração. Segundo a leitura provocativa de Jameson, "O Capital", como forma, precisa enfrentar o desafio de oferecer uma visão total de processos que aparecem, na experiência social, fragmentados. O argumento progride segundo a resolução parcial de dilemas ou contradições específicas, de forma potencialmente mais clara, o que por sua vez resulta na expansão do próprio objeto - o capital. DESEMPREGO A segunda dimensão fundamental de "O Capital" é socioeconômica: para Jameson - e a afirmação, ainda que questionável, não podia ser mais atual - "O Capital" é um livro sobre o desemprego e, mais especificamente, sobre como o desemprego é "estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo". A constatação joga a categoria de exploração econômica no centro do palco -em prejuízo, no entanto, da categoria política de dominação: a classe trabalhadora global contemporânea, que em sua precariedade e vulnerabilidade lembra justamente a miséria dos trabalhadores da aurora da revolução industrial, são os "portadores de um novo tipo de miséria histórica e global" que comprovam o caráter estrutural do desemprego e do emprego precário no capitalismo. Haveria uma possibilidade promissora de mudança teórica que acompanha a reinterpretação dessas "populações perdidas" em termos não de dominação política, mas de exploração econômica. Uma releitura de "O Capital" nesses termos nos força a renovar o compromisso com a "invenção de um novo tipo de política transformadora em escala global", para além das tentativas, de mitigação dos efeitos perversos do capitalismo. ESPAÇO CONSTRUÍDO Para David Harvey, no entanto, em "The Enigma of Capital" [Oxford University Press, 304 págs., R$ 37,90], a crise atual do capitalismo tem raízes mais particulares e concretas, e está associada a um curto-circuito no ciclo de investimento no "espaço construído" iniciado no pós-Guerra. A urbanização, processo que acompanha desde sempre o desenvolvimento capitalista, como atestam o surgimento das cidades industriais inglesas e a reestruturação de Paris pelo barão Haussmann, se tornou, explica Harvey, "um dos grandes negócios sob o capitalismo". As conexões entre urbanização, acumulação de capital e formação de crises merecem, segundo o geógrafo britânico, uma análise cuidadosa. Os ganhos (e perdas) que advêm da criação de novos espaços e de novas relações espaciais seriam recorrentemente ignorados como "um dos aspectos fundamentais da reprodução do capitalismo". Para quem conhece cidades como Pequim ou São Paulo, isso não é novidade. No centro da crise atual, por diferentes motivos EUA e Espanha viram-se reféns de modelos em muitos aspectos parecidos, centrados na expansão do mercado imobiliário, acompanhada de uma transformação das estruturas administrativas e financeiras que viabilizou um mercado fundado principalmente no endividamento da classe trabalhadora. A aposta, no entanto, na "valorização infinita" dos bens imobiliários e na capacidade de repagamento das dívidas pelas famílias (junto com os malabarismos financeiros possibilitados pela desregulamentação do mercado de crédito) levaram ao efeito dominó que derrubou Bolsas e mercados planeta afora. O boom imobiliário e a explosão da bolha revelam a tendência real, para Harvey, do capitalismo global desde pelo menos meados da década de 1970: queda de produtividade (e da lucratividade dos investimentos produtivos), acompanhada de um excesso ("surplus") de capital que precisou ser reinvestido na construção de novos espaços. O esvaziamento das cidades americanas e a taxa de desocupação de imóveis novos na Espanha são o resultado dessa movimentação do capital que, como não raramente acontece, deixa em seu rastro espaços inutilizados ou devastados. PÚBLICO E PRIVADO A perspectiva de Therborn também conduz a uma conclusão um pouco menos abstrata e mais realista do que a de Jameson, se não exatamente otimista. A pergunta relevante, nesse caso, nos joga em um campo crucial para as análises marxistas: o jogo entre o poder público e os atores privados, entre Estados e mercado, e diz respeito à capacidade do Estado de desenhar e implementar políticas públicas, sejam elas de coordenação (políticas de desenvolvimento econômico, por exemplo), sejam políticas sociais (como programas de transferência de renda). As décadas recentes "testemunharam sucessos surpreendentes de políticas estatais", como o controle da inflação e a criação de organizações interestatais regionais -apesar da persistência do desemprego mesmo em regiões desenvolvidas como a União Europeia, onde as políticas de bem-estar têm sido capazes, pelo menos até esse momento, de proteger os desempregados da pobreza "ao estilo norte-americano". Estados nacionais, regiões e cidades diferem, naturalmente, em sua capacidade de implementar políticas públicas, mas, para Therborn, o padrão não aponta para uma diminuição geral dessa capacidade. "Certamente", conclui, "as políticas de esquerda têm tido mais dificuldade para serem implementadas, mas isso deriva não tanto de falhas dos Estados quanto da paralisia da coordenação política resultante de governos de direita" ("conservadores acreditam que o governo é ineficiente", diz um ditado corrente, "e se elegem apenas para provar que estão certos"). POLÍTICA A leitura de Jameson, totalizante e antipolítica como o marxismo filosófico corre o risco de ser, também perde de vista a multiplicidade de caminhos políticos tomados desde o pós-Guerra. O Estado de bem-estar social europeu e o Estado desenvolvimentista asiático, passando pelos "novos" movimentos sociais (as lutas por direitos civis, o feminismo, o ambientalismo etc.) aos governos latino-americanos de esquerda, indicam que, como afirma o crítico inglês Terry Eagleton, Marx "estava certo" [Why Marx Was Right, Yale University Press, 272 págs., R$ 55,80]. A denúncia e o combate à exploração, à desigualdade e à dominação são centrais hoje como eram no século 19. Ninguém ficaria mais contente com o "fim" do marxismo do que os próprios marxistas, diz Eagleton. Isso seria sinal de que a tarefa histórica a que se propuseram -a superação da exploração e da desigualdade, ou do capitalismo- estaria cumprida. Ironicamente, no entanto, o marxismo é declarado morto, ou fora de moda, justamente pelos defensores contemporâneos de um capitalismo que rapidamente "reverte a níveis vitorianos de desigualdade." A suposta crise do marxismo, no entanto, é antes reflexo das transformações sociais, econômicas e políticas das últimas três ou quatro décadas. Desde o início dos anos 1970, o por assim dizer "centro" do sistema capitalista - Europa e EUA - assistiu à transição de suas economias baseadas em manufatura para uma cultura "pós-industrial" da sociedade do consumo, das novas tecnologias de comunicação e da economia de serviços. As causas e consequências dessa mudança podem ser atribuídas ao refluxo dos anos de crescimento econômico explosivo do pós-guerra, mas também à escalada do conservadorismo político. De Margaret Thatcher, no Reino Unido, a Ronald Reagan, nos EUA (e, para pegar um exemplo regional em versão mais explicitamente truculenta, Augusto Pinochet, no Chile), os novos conservadores tocaram o processo de desregulamentação dos mercados, submeteram os movimentos de trabalhadores a ofensivas legais e políticas e criaram um suposto consenso contra políticas sociais estatais (que, no caso dos EUA de Reagan, não deixou de ter contornos raciais e somou-se à reação conservadora contra o movimento dos direitos civis dos anos 1960). O resultado é um ambiente político que, com a destruição das lealdades de classe e o estímulo à fragmentação da sociedade civil, é cada vez mais cínico, administrado e manipulado. O quadro atual, para Eagleton, faz ainda mais urgente a crítica marxista: em escala global, "o capital é mais concentrado e predatório do que jamais foi" e a classe trabalhadora, longe de ter desaparecido, aumentou em tamanho. Prova disso é o rápido processo de urbanização e industrialização em curso no sul global. URGÊNCIA Para Eagleton a crítica marxista, no entanto, não pode resultar nessa forma bem-intencionada de resignação que é o pensamento utópico. O marxismo é atual não apenas como referencial teórico para as ciências humanas ou como crítica filosófica da modernidade -ele sempre carregou consigo as exigências políticas (e morais) mais urgentes para a sociedade contemporânea. No último século e meio, foi capaz de aglutinar os mais diversos movimentos anticapitalistas, sejam os "tradicionais" movimentos trabalhistas, sejam os novos movimentos sociais. Se as reflexões de Eagleton têm algo de pastoral, ou de evangelho de um crente já cansado demais para abandonar suas certezas, elas reafirmam um conjunto de princípios - racionalidade, autonomia, igualdade - herdados, sem dúvida, da tradição iluminista burguesa, mas radicalizados pela crítica marxista e encampados nas diversas lutas anticapitalistas dos séculos XIX e XX - e deste século XXI. Se as desigualdades de poder e riqueza, se as guerras imperiais, a intensificação da exploração e a atuação cada vez mais repressiva dos Estados caracterizam o mundo contemporâneo, a crítica marxista - cujos temas fundamentais são exatamente esses - é tanto mais pertinente e urgente. "O capitalismo", diz Eagleton, "e não o marxismo, deveria estar fora de moda." É tempo de abandonarmos o mito de que a "riqueza fabulosa" - material ou imaterial - que o capitalismo é capaz de gerar estará, no final, à disposição de todos.

domingo, 21 de agosto de 2011

Contraponto: Why Environmentalism is Conservative - David Biello

Some politicians seem to have it in for the environment these days. Whether its presidential hopeful Rick Perry denouncing climate science as a quote "cult" or his more moderate peer Jon Huntsman calling for environmental regulations to be put on hold until the economy improves, it's clear that protecting our air, water and other natural resources is no longer fashionable.

But their Grand Old Party actually started environmental protection in the first place. Richard Nixon signed into law most of the nation's landmark environmental laws and founded the Environmental Protection Agency back in 1970.

A bit further back, Teddy Roosevelt founded the national park system, among other efforts to conserve the natural heritage of the United States.

Of course, there are politicians on both sides of the aisle interested in preserving the environment and some conservatives accept the preponderance of scientific evidence on human-caused climate change, like Huntsman. And it's not like Democrats never despoil. Witness the longstanding protection of coal mining by virtually all West Virginia politicians.

But for the moment, some conservatives seem to have forgotten that conservation is inherently conservative.

Fonte: Scientific American

domingo, 7 de agosto de 2011

A escolha do ministro do Supremo - Joaquim Falcão

Leia artigo de Joaquim Falcão sobre a escolha do ministro do STF que substituirá Ellen Gracie.
A indicação da presidenta provavelmente vai considerar a sintonia política do candidato com sua visão de Brasil, a pressão da base governista por um voto pró-absolvição no mensalão, o desestímulo ao individualismo político midiático e a capacidade do candidato articular e influenciar, a longo prazo, os destinos do próprio Supremo. E, se possível, liderar intelectualmente.
Na íntegra aqui

Conversa sobre multiculturalismo no Brasil - A questão indígena

Série de reportagens que revelam o problema do diálogo de culturas, situado no Brasil, especialmente em vista da tradição de algumas etnias indígenas condenarem à morte bebês que nascem com deficiência física, gêmeos ou de mães solteiras. Problema complexo. Não se deixe levar pela primeira impressão.
Jornal Cidade de 20/4/2009
Morte da indiazinha Tititu exemplifica a incompetência dos órgãos federais, que chegam a ser empecilho no salvamento de crianças indígenas.
Por questão de sobrevivência do grupo, na cultura de muitas tribos indígenas da Amazônia Legal não há espaço para os fracos. Por mais que doa aos pais, a tradição manda que as crianças que nasçam com alguma deficiência devam ser sacrificadas. O método utilizado é geralmente o sufocamento ou soterramento. Incontáveis bebês já foram estrangulados, sufocados com folhas, afogados ou enterrados vivos porque seus parentes decidiram que eles seriam uma ameaça para a existência da tribo.
Deficiências físicas não são os únicos motivos para o infanticídio. Filhos de paternidade questionável ou gêmeos – que, segundo as crenças, trazem azar para a aldeia – são vítimas em potencial. Por mais bárbaro que seja, esses costumes estão arraigados nas tribos.
Há anos, a organização não governamental Atini trabalha no sentido de proteger crianças indígenas do infanticídio e conscientizar as gerações mais jovens a dizer não aos assassinatos. Por mais árduo que seja, o trabalho da ONG vem colhendo vitórias e reconhecimento, principalmente no exterior. O pior adversário, porém, não são os indígenas e sim a burocracia federal, em especial a FUNAI e a Funasa.
“Como todo órgão público, que cargos de direção são por indicação política, tem os seus problemas. Cada gestor tem uma ideologia diferente e dificilmente você consegue levar adiante projetos mais a longo prazo. A distância do trabalho de campo e os gabinetes onde se tomam as decisões é muito grande, além do excesso de burocracia. Todas estas coisas dificultam muito o trabalho. Você pode encontrar bons profissionais com muito boa vontade, mas dentro da máquina administrativa acabam se perdendo”, comenta Edson Suzuki, diretor-executivo da Unicamp, mestre em lingüística, que atua há cerca de 20 anos junto ao povo indígena suruwahá no Amazonas, desenvolvendo pesquisa linguística e atuando nas áreas de etno-educação e saúde.
Profundo conhecedor da cultura e da língua indígena, tem apoiado membros dessa etnia em sua luta pela vida de crianças com deficiências físicas ou mentais. O trabalho de Suzuki tem se tornado internacionalmente conhecido e ele tem denunciado o problema do infanticídio na Inglaterra, na Holanda e na Noruega.
Um triste caso na tribo Suruwahá é da menina Tititu, que se tornou nacionalmente conhecida quando seu pai Naru fez um apelo emocionante à Nação Brasileira, no programa Fantástico da Rede Globo, em 2005. Sua filha sofria de uma doença hormonal que causava, entre outros problemas, uma deformidade no órgão genital. Ela precisava de uma cirurgia corretora para não ter que ser sacrificada na aldeia, como reza a tradição cultural.
Naru teve que lutar muito contra o relativismo cultural reinante nos meios indigenistas para conseguir uma autorização da Funasa para que sua filha passasse por uma cirurgia reparadora do órgão genital. Ele estava desesperado, pois sabia que sem a cirurgia, sua filha teria que ser sacrificada. Mas ele estava decidido a não fazer isso porque a amava. Chegou a dizer que se tivesse que matá-la, ele se suicidaria em seguida, de tanta tristeza. Finalmente, depois de meses de insistência, Naru conseguiu a autorização para a cirurgia.
Naru tinha plena consciência de que a doença de sua filha exigiria cuidados pelo resto da vida, mas ele e sua esposa aprenderam a administrar os medicamentos e voltaram satisfeitos para a aldeia. Tititu foi aceita com alegria pela comunidade e estava crescendo feliz entre seus parentes. Regularmente eles eram levados pela Funasa até Manaus onde Tititu fazia os exames de sangue necessários para controlar a dosagem do medicamento.
A notícia da morte súbita de Tititu surpreendeu a todos. Segundo relato do enfermeiro do DSEI local, Tititu morreu de desidratação. Sabendo que a falta do medicamento prescrito causa desidratação súbita e leva a óbito, o IACIB exige que a Funasa e a FUNAI prestem esclarecimentos e expliquem o que de fato aconteceu com a menina Tititu Suruwaha.
“A Funasa apresentou um relatório dos procedimentos de atendimento. Até o momento não houve nenhuma ação. O doutor Davi Terena que é um advogado indígena, denunciou o caso de Tititu no Ministério Público, pedindo uma investigação. Terena está planejando uma viagem para a área suruwaha, juntamente com outro indígena, Eli Tikuna, representante da organização dos caciques tikunas de Brasília. Eles querem ouvir diretamente dos suruwahas o que aconteceu”, conta Suzuki. ONG pressiona aprovação de lei contra infanticídio
Um dos principais objetivos da ONG Atini, sediada em Brasília, é que a Lei Muwaji seja apreciada e aprovada pelo Congresso Nacional. O nome do projeto de lei, que condena o infanticídio e os maus-tratos de crianças indígenas, é uma homenagem a Muwaji Suruwahá, que lutou bravamente para defender a sobrevivência de sua filha, que nasceu com paralisia cerebral.
Edson Suzuki, diretor-executivo da Atini, conta que atualmente a Lei Muwaji está sob responsabilidade da deputada federal Janete Pietta (PT-SP), mas ainda não está tramitando na Comissão dos Diretos Humanos da Câmara Federal.
A meta é que o triste destino de milhares de crianças, como Tititu Suruwahá e Poliana Yanomami, não se repita. A luta pela vida de Poliana criança não tem sido fácil, desde as primeiras horas de vida. Foi rejeitada por sua mãe logo depois do parto, pois ela já não estava mais vivendo com o pai.
Ao invés de matar a criança, a mãe a entregou a uma tia, que imediatamente a levou até o mato e começou a sufocá-la com folhas, como é costume do povo. Antes que morresse, uma outra tia a resgatou e a entregou a uma missionária, que trabalhava junto aos Yanomami.
Poliana foi ainda vítima de maus-tratos e teve que ser retirada da aldeia num voo de emergência, depois de ser tão espancada pela tia que acabou perdendo os movimentos do lado esquerdo do corpo. Atualmente, a indiazinha está internada numa UTI, em São Paulo, com infecção generalizada.
Além das crianças indesejadas, é comum que os idosos sejam “descartados” nas tribos amazônicas. “Infelizmente, não conhecemos alguém que trabalhe nesse aspecto. Acho que fomos os pioneiros em começar a falar em direitos individuais para os povos indígenas. Até então se tem lutado e conseguido muito avanço apenas no direito coletivo. Muitos optam por garantir o direito coletivo de se manter uma tradição e não dar ouvidos ao direito de uma mãe que não quer sacrificar seu filho”, conclui Suzuki.
(Rodrigo Salles)
Folha de 7/8/2011

Sob pressão do governo, a Câmara esvaziou um projeto de lei que previa levar ao banco dos réus agentes de saúde e da Funai (Fundação Nacional do Índio) considerados "omissos" em casos de infanticídio em aldeias, informa reportagem de Bernardo Mello Franco publicada na Folha deste domingo (a íntegra está disponível para assinantes do jornal e do UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha).

A prática de enterrar crianças vivas, ou abandoná-las na floresta, persistiria até hoje em cerca de 20 etnias brasileiras. Os bebês são escolhidos para morrer por diversos motivos, desde nascer com deficiência física a ser gêmeo ou filho de mãe solteira.

A Funai se nega a comentar o assunto. Nos bastidores, operou para enfraquecer o texto com o argumento de que ele criaria uma interferência indevida e reforçaria o preconceito contra os índios.

Do outro lado da discussão, ONGs e deputados evangélicos acusam o governo de cruzar os braços diante da morte de crianças e defendem que o Estado seja obrigado por lei a protegê-las.

Alguns textos acadêmicos sobre o assunto

A Tutela do Estado frente aos Conflitos Culturais (Daniel Gonçalves)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Futebol, paixão e poder

“Sei tudo quanto é malandragens, se é preciso, jogo com todas as armas. Já conheci todos os submundos, mas o do futebol é o pior.”(Nabi Abi-Chedid, ESP 22/7/1979)
Muitos acham que a política é um dos meios mais fáceis de se tornar milionário. Embora com os pecados da generalização, os escândalos recentes parecem lhes dar razão. Mas eles se esquecem de incluir na lista uma atividade que mobiliza nossos sentimentos de modo descomunal: o esporte e, mais especificamente, o futebol. Não me refiro (ou só) a quem o pratica, mas a quem o administra. A FIFA está agora envolta em denúncias de corrupção para a escolha das sedes da Copa do Mundo. A CBF cheira à mistura constante de custeio das riquezas privadas com as emoções e dinheiros públicos.
Se os escândalos na política não são de hoje, tampouco o odor nauseabundo da entidade máxima do futebol brasileiro é novidade. Sem querer fazer da lista um apuro de ocorrências, relembro de alguns episódios mal explicados e com olor sulfúrico dos últimos trinta anos. Não me tomem por rogado, sou mais um apaixonado por futebol. E, confesso, atleticano por imposição das horas e, talvez, do destino. Vamos lá.

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I Amy Winehouse (& Voldemort)

Amy e Voldemort se foram com boa parte do que não presta em nós. E boa parte do que nos mantém a salvo. Um cálculo relativamente simples e milenar. Como não podemos com o nosso fardo e as nossas culpas, nem com a crueza do real, precisamos oferecer alguém ao sacrifício para abrandar a fúria dos deuses que, embora não saibamos, somos nós mesmos. Uma autorreferência narcísica e existencial. Escolhemos, em geral, as escórias de cada geração, embora com estatuto distinto, porque, como deuses, precisamos e gostamos de classificar. Cada coisa a seu uso, cada coisa em seu lugar. Uma escolha com a razão da desrazão, a consciência do inconsciente, todavia, escolha de etiqueta e conveniência.
Há uma classe de escórias que são a encarnação de Mefistófeles a exemplo do Você-Sabe-Quem. Os Voldemorts não têm direito a um lampejo de humanidade. São maus do mal, corpo e alma. Bem distintos de nós, que somos todos do bem, honrados cem por cento o tempo todo; e guerreiros, mesmo sem espada ou granadas, mesmo só de palavras e intenções, contra a legião desses malfeitores, inventados por nosso desejo de punição. Eles parecem ser mais resistentes e poderosos que nós, vencendo-nos, durante quase toda vida, em batalhas miúdas, diárias. Quando nos sentimos fracos, aí é que eles aparecem mais fortes e indestrutíveis, nos jogando na cara o destino: medíocre repertório de horas passadas a servir aos seus deleites. Quando se vão, por ato inexplicável de valentia ou por vontade de um deus-diretor, não nos contemos de exultação, algo que nasce nos lugares mais escondidos de nossa essência como fôssemos uma só legião de vitoriosos.
Danadas são outras espécies de vilões, que se envolvem na ambiguidade de um mal amado. No duplo sentido. São do mal, mas são amados. São do mal, porque não foram bem amados. São, por origem, inventos de nossos desejos de subversão. Como os Voldemorts, são péssimos exemplares, trágicos, tristes e destinados, mais cedo ou mais tarde, ao fracasso. Diferentemente dos Voldemorts, porém, eles não são apenas maus, são malditos. São malvados fascinantes. Nos deixam apaixonados por sua arte, sua história, sua ebriez de sentidos e convenções. Nos deixam confusos também, pois queremos e não queremos ser como eles, viver a vida deles, experimentar a sua genialidade e esquisitice. E quando partem, seguindo um roteiro que já conhecíamos, ficamos mais tristes que felizes. Tudo em nós se torna indiviso entre ganhadores e vencidos. Amy nos deixa assim com um adeus engolido mais que abreviado, o aceno da mão contido no bolso de uma saudade ressentida e desviada.
Maldades necessárias. Precisamos de Voldemorts e de Amies para que o modelo de sociedade feliz e de pessoas honradas seja mantido. São a prova de que o bem (a felicidade, a honradez), identificado em nós, triunfa sobre o mal (o vício, a ganância), por eles representado. Mesmo que seja uma vitória só no imaginário, pois não há honradez e felicidade puras, nem um lado com o monopólio das virtudes e outro com os débitos dos vícios. Somos plurais em contradições, mas fingimos que fingimos que acreditamos que somos ou podemos ser a parte boa da maçã. Vivemos disso, dessa pressuposição renovada sempre que um mau e um maldito padecem. E padecem quase sempre e apenas na tela do cinema ou da tevê, talvez, como forma de virtualizar, de dar publicidade e de glamourizar, ao mesmo tempo, a sua morte.
Voldemort se desfez na ficção de um cenário londrino mágico. Amy se apagou no apartamento de um cenário londrino trágico. Coincidência teatral. É como se ambos, nesse instante, fossem da mesma matéria, personagens que cumpriram o script da culpa. Nossa, deles. Ao desligarmos a tevê ou sairmos do cinema, a realidade se reduz aos nossos passos, à pureza de nossos sentimentos e à felicidade de nossas famílias. Tudo lubrificado com o fim de Voldemort. E de Amy. Estamos a salvo com nossas vidinhas de inventores do cotidiano e de malfeitores, para esconder as nossas verdadeiras pragas e crueldades, nosso lado Amy, nosso deslize Voldemort. Ah, Amy, não há jeito, não há reabilitação. Somos assim, seremos assim. Creio que para sempre. Life is a losing game.