quarta-feira, 2 de novembro de 2011

"Occupy Wall Street” e os limites das liberdades

As regulamentações de horários e locais de passeatas e manifestações públicas ferem a liberdade de reunião e de expressão? Esse é um dos temas mais discutidos nos EUA hoje. Diversas normas locais restringem locais, fixam hora de início e término das manifestações, além de exigirem autorização ou aviso prévio às autoridades competentes.


Em Clark v. Community for Creative Non-Violence, a Suprema Corte não reconheceu o direito da Community a dormir nos parques nacionais em Washington DC, como forma de protesto. Diversas autoridades locais estão usando o precedente para pôr fim às ocupações. A questão está posta.

O efeito manada na internet e as críticas ao ex-presidente Lula

Ainda estão vivas as palavras de Lula, dizendo que desejaria estar doente para ir-se tratar num hospital do SUS. E agora está em tratamento no Sírio-Libanês, um dos mais caros hospitais do país. A hipocrisia política é reprovável, assim como a qualidade da maioria dos serviços do SUS. E a crítica um direito democrático. Mas será que isso autoriza as piadas infames sobre o ex-presidente que circularam nas redes sociais? Atribua-se à difusão do mau gosto, em grande parte, ao efeito manada propiciado pela internet. Cass Sunstein escreveu, num livro que organizei "Constituição e crise política", um artigo sobre as causas desse efeito e da radicalização dos grupos sociais em "Por que os grupos vão a extremos?". Ontem Hélio Schwartsman publicou na Folha um texto interessante também a respeito, intitulado Patologias de grupo, baseando-se no caso brasileiro:

Quem quiser vislumbrar a face feia da natureza humana deverá dar uma espiadela nos comentários de leitores a reportagens, blogs e colunas que tratam da saúde de Lula. Há um número não desprezível de pessoas querendo despachar o ex-presidente para a fila do SUS e alguns chegam mesmo a regozijar-se com sua doença. 

O fenômeno, com claros contornos políticos, parece estar relacionado à internet e à massificação das redes sociais. Trata-se de uma hipótese especulativa, mas chama a atenção o fato de as manifestações mais deprimentes de intolerância ilustrarem com perfeição o que psicólogos sociais chamam de patologias do pensamento de grupo.

A primeira é a polarização. Junte um punhado de gente com opiniões semelhantes, deixe-os conversando por um tempo e o grupo sairá com convicções mais parecidas e mais radicais. Provavelmente é assim que nascem organizações terroristas.

A conformidade é outro elemento importante. Grupos tendem a suprimir o dissenso. Mais do que isso, procuram censurar dúvidas que um dos membros possa nutrir e ignorar evidências que contrariem o consenso que se forma. É esse o segredo do sucesso das religiões.

Há, por fim, a animosidade. Ponha um corintiano e um palmeirense numa sala e mande-os discutir futebol.

Eles discordarão, mas provavelmente se tratarão com civilidade. Entretanto, se você colocar cem de cada lado, quase certamente produzirá xingamentos e até pontapés.

O que a internet e as redes sociais fazem é criar gigantescos espaços virtuais onde o pensamento de grupo pode prosperar, com o que ele tem de positivo e de negativo. A linha que separa a sabedoria das multidões de delírios coletivos é tênue.

O que os experimentos em psicologia sugerem é que a melhor defesa contra o radicalismo é semear dúvidas, de preferência levantadas por um membro do próprio grupo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Criação, destruição e hegemonia



Muitos estudos apontam para uma sucessão hegemônica dos Estados Unidos pela China. Rubens Ricúpero, na Folha de S. Paulo de hoje, apresenta uma visão interessante sobre o tema. O que sobre a uns e falta a outros:

Pode impressionar como sinal de mau agouro o desaparecimento de Steve Jobs justamente no momento em que mais se discute o suposto ou real declínio dos EUA. Se examinarmos, um por um, os fatores responsáveis pelo longo predomínio dos norte-americanos, a capacidade de invenção e inovação “da qual Jobs foi a encarnação viva” aparece não só como o mais indiscutível, mas também o mais difícil de emular e superar.
Li uma vez o artigo de um economista chinês que relativizava o êxito da China como “fábrica do mundo” e imbatível exportadora de manufaturas. O artigo lembrava que nenhum dos três produtos que haviam revolucionado o mercado nos anos recentes “’o iPhone, o iPod e o iPad”’ tinha sido inventado pelos chineses, embora a fabricação se fizesse na China devido ao custo.
Essas três novidades se devem à inventividade de Jobs, mas é óbvio que sua morte não esgota a capacidade de inventar e renovar que os EUA não cansam de demonstrar há mais de século e meio. O que me chama a atenção nos norte-americanos não é tanto o talento para as invenções mecânicas, a aplicação de avanços da ciência a máquinas e aparelhos que simplificam a vida cotidiana. Desse tipo de inventor, o símbolo maior foi, sem dúvida, Edison.
Há, porém, outro tipo de invenções, as intangíveis como foram, no passado medieval ou no começo da modernidade, a criação pelos italianos da letra de câmbio, do contrato de seguro marítimo, da contabilidade de partida dupla, dos bancos e mais tarde, pelos holandeses, da sociedade por ações.
Nessa área, os norte-americanos inovaram em quase tudo, a começar pelo comércio, que quase não havia mudado desde os tempos de fenícios e gregos. Começaram com as vendas por catálogo e reembolso postal, passaram para o supermercado, em seguida para o shopping center, o drive-in, as franquias, o fast food, só para ficar nesses exemplos.
Muito mais transformadoras e imateriais foram as invenções do cartão de crédito e do comércio e do caixa eletrônico. O que essas invenções trouxeram foi não só a modificação por meios mecânicos de atividades tradicionais como lavar e cozinhar. Aliadas às inovações no domínio da recreação e do relacionamento “a tevê, as redes sociais na internet”, elas na verdade recriaram a própria vida, a maneira como as pessoas empregam a maior parte do tempo e se relacionam.
Inovadores não convencionais, sem diploma, de gostos alternativos como Jobs são o produto de uma sociedade inquieta que continuamente se questiona e reinventa a si mesma. Sociedades hierarquizadas e autoritárias como a chinesa não possuem esse dom para inovar.
Enquanto predominava a destruição criadora (creative destruction), isto é, a inovação que destruía coisas antigas para dar lugar a novas e melhores, a superioridade norte-americana não corria perigo. Se ela agora está em jogo, é por causa da criação destruidora (destructive creation), a financeira, aniquiladora de riqueza e geradora de injustiça.
A ameaça à superioridade norte-americana não vem dos chineses, mas de dentro, de um modelo que dá mais poder e influência a lobistas corruptos e banqueiros destrutivos que a criadores como Jobs.

domingo, 23 de outubro de 2011

A encruzilhada do mensalão

Leiam com atenção a notícia trazida por Élio Gaspari neste domingo, 23/10/2011 na Folha de S.Paulo, sob o título "A encruzilhada do julgamento do 'mensalão'". É preocupante. 

Pelo menos uma pessoa suspeita que foi sondada para uma das vagas surgidas no Supremo Tribunal Federal e lhe perguntaram o que achava do processo do "mensalão". Essa esperteza é perigosa. Primeiro porque, revelada, avacalha o governo e a escolha. Além disso, muitas vezes não funciona. O convidado pode dizer uma coisa hoje e outra ao julgar o caso. A direita americana aprendeu isso em 1990, quando o presidente Bush Primeiro nomeou para a Corte Suprema o juiz David Souter, um solteirão solitário que só lia jornais aos domingos, tinha televisão em preto e branco e vinha avalizado pelos conservadores de New Hampshire. Souter desequilibraria a Corte em favor dos republicanos, mas deu-se o contrário. Ele ajudou a conter a ofensiva contra o direito das mulheres ao aborto e, em 2000, votou, com a minoria, contra a decisão que deu a Presidência dos Estados Unidos a Bush 2°. Um dia vai-se saber o tamanho de sua amargura. Souter ficou na cadeira por mais nove anos. Eleito Obama, renunciou, entregando a vaga a um presidente liberal. O ministro Joaquim Barbosa concluirá o relatório do "mensalão" ainda neste ano e, pelo andar da carruagem, o processo chegará ao final em 2012, tornando-se uma encruzilhada no calendário político. Casos esparsos de corrupção e manifestações de rua continuarão a pipocar, ao sabor das malfeitorias dos companheiros, mas, nos dias do julgamento, haverá gente na rua. Se entre os 11 juízes da ocasião houver magistrados colocados sob a suspeita de uma armação do comissariado, o governo e o Judiciário só terão a perder.

domingo, 16 de outubro de 2011

Os indignados de agora e de ontem - discurso de Naomi Klein


A Folha de S. Paulo publicou hoje, domingo, 16/10/2010, o discurso de Naomi Klein, ativista social e autora de "A doutrina do choque - A ascensão do capitalismo de desastre, comparando o movimento atual, especialmente o "Ocupe Wall Street" com o movimento do passado, principalmente o dos anos 1990. Muito interessante:

Uma coisa que sei é que 1% das pessoas amam as crises.

Quando o público está em pânico e desesperado, e ninguém parece saber o que fazer, o momento é ideal para forçar a aprovação de uma extensa lista de políticas que beneficiam as empresas: privatizar a educação e a Previdência Social, reduzir os serviços públicos, remover os últimos obstáculos ao poder das grandes companhias. Em meio à crise, isso vem acontecendo no mundo inteiro.

Só existe uma coisa capaz de bloquear essa tática, e felizmente é uma coisa muito grande: os outros 99% das pessoas. E esses 99% estão saindo às ruas, de Madison a Madri, para dizer: "Não, não pagaremos pela sua crise".

O slogan surgiu em 2008, na Itália. Ricocheteou para a Grécia, França e Irlanda, e por fim voltou. "Por que eles estão protestando?", indagam os sabichões embasbacados na televisão. Enquanto isso, o resto do mundo pergunta: "Por que demoraram tanto? Estávamos imaginando quando vocês enfim se dignariam a aparecer. Bem-vindos".

Muita gente traçou paralelos entre o movimento "Ocupe Wall Street" e os chamados protestos antiglobalização que conquistaram a atenção do planeta em 1999, em Seattle. Foi a última ocasião em que um movimento mundial, descentralizado e comandado por jovens tomou por alvo direto o poder das empresas. E me orgulho por ter participado daquilo que chamávamos "o movimento dos movimentos".Mas há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos como alvo conferências de cúpula: da Organização Mundial de Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Grupo dos 8.

Mas esses eventos são transitórios por natureza, o que nos tornava igualmente transitórios. Aparecíamos, conquistávamos manchetes no mundo todo e em seguida desaparecíamos. E no frenesi e patriotismo excessivo que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, foi fácil nos varrer do cenário, ao menos nos Estados Unidos.Já o "Ocupe Wall Street" tem alvo fixo. E não definiu um prazo para sua presença, o que é sábio. Apenas quem se mantém firme pode criar raízes. E isso é crucial.

Na Era da Informação, muitos movimentos brotam como belas flores, mas logo morrem. Isso acontece porque não criam raízes e não têm planos de longo prazo para se sustentar.

Ser horizontal e profundamente democrático, é maravilhoso. Esses princípios são compatíveis com o árduo trabalho de construir estruturas e instituições firmes para suportar futuras tempestades. Tenho grande fé nisso.

Há mais uma coisa que esse movimento está fazendo direito: assumiu um compromisso para com a não violência. E essa imensa disciplina significou, em incontáveis ocasiões, que as reportagens da mídia tivessem por tema a brutalidade policial, injustificada e repugnante. Enquanto isso, o apoio ao movimento só cresce.


Mas a maior diferença que a década de distância entre os dois movimentos produziu é que, em 1999, nós estávamos atacando o capitalismo no pico de um boom frenético. O desemprego era baixo, as carteiras de ações propiciavam fortes lucros. A mídia estava embriagada pelo acesso fácil ao dinheiro. Então, todos preferiam falar mais sobre as empresas iniciantes de internet do que sobre os esforços para paralisar atividades reprováveis.


Nós insistíamos em que a desregulamentação que havia possibilitado aquele frenesi teria um custo. Que ela havia rebaixado os padrões trabalhistas. Que prejudicava o meio ambiente. As empresas se tornavam mais poderosas que os governos, e prejudicando nossas democracias.

Mas, para ser honesta, enfrentar um sistema econômico baseado em cobiça era uma parada indigesta enquanto as coisas iam bem, ao menos nos países ricos.Passados 10 anos, parecem não existir mais países ricos. Apenas muitas e muitas pessoas ricas. Pessoas que enriqueceram saqueando o patrimônio público e exaurindo os recursos naturais do planeta.

O ponto é que hoje todos podem ver que o sistema é profundamente injusto e está escapando ao controle. A cobiça descontrolada devastou a economia mundial, e está devastando o mundo natural.Estamos pescando demais em nossos oceanos, poluindo nossas águas com exploração petroleira e recorrendo às formas de energia mais sujas do planeta.

Esses são os fatos práticos. São tão gritantes, tão óbvios, que é muito mais fácil agora do que em 1999 promover conexão com o público, e assim expandir o movimento.Temos de tratar esse belo movimento como se fosse a coisa mais importante do mundo. Porque de fato é.

sábado, 15 de outubro de 2011

Indignados: Não no Brasil

Os árabes se indignam, os franceses se indignam, os ingleses se indignam, os espanhóis se indignam, os alemães se indignam, os gregos se indignam, os suíços se indignam, os italianos se indignam, os chilenos se indignam, até os americanos se indignam, só os brasileiros não conseguem se indignar... Que falta a nós que os outros têm?

Manifestações espalham-se por 82 países
Em vídeo

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O declínio da influência do constitucionalismo dos Estados Unidos


O império perece? As análises indicam que sim. Inclusive no plano jurídico. Leia texto sobre o assunto.
The Declining Influence of the United States Constitution


Mila Versteeg and I have just posted to SSRN a paper that might be of interest to readers of this blog entitled "The Declining Influence of the United States Constitution". It follows up on an earlier article, imminently forthcoming in the California Law Review, in which we took a very bird's eye view of the evolution and ideology of global constitutionalism. This time, we zoom in and take an empirical look at whether constitution-makers in other countries (still) emulate the U.S. Constitution. (The title of the paper offers a hint as to what we conclude.) We also look for evidence that international or regional human rights instruments have influenced the way in which national constitutions are written, but the evidence is underwhelming. 

A discussão do casamento homoafetivo nos Estados Unidos

Interessante o resumo de um simpósio, realizado em agosto passado nos Estados Unidos, sobre a constitucionalidade das leis que vedam a união homoafetiva, trazido por Linda Keen. Segundo os debatedores, a Suprema Corte estaria para invalidar uma lei federal do gênero. Curioso, mas não por acaso, os argumentos não são distintos dos que se apresentam aqui: opinião pública contrária, necessidade de pluralismo, disfuncionalidade do Legislativo para equacionar tais situações, tarefa contramajoritária ou defensora dos direitos fundamentais da Suprema Corte, direitos fundamentais como proteção das minorias.



U.S. Justice Antonin Scalia has already conceded that laws banning same-sex marriage are unconstitutional, according to one constitutional scholar. And the U.S. Supreme Court is “very likely” to invalidate the federal Defense of Marriage Act once it reaches the U.S. Supreme Court, says another, generally conservative, expert.
Leia na íntegra aqui

terça-feira, 20 de setembro de 2011

De que são feito os sonhos


Ouro Preto, 21 de setembro de um ano qualquer. Estou a um passo do precipício, sob essa neblina que não deixa o sol revelar os contornos do paredão de pedras nem os imponentes campanários das igrejas à distância de meia légua. Ainda assim escuto o badalar dos sinos entre uma e outra prece das beatas como sucede em todo alvorecer. A cena de tão vista nesses anos todos acabou impregnando meus olhos e ouvidos como fosse parte deles, imagem guardada na memória da alma (o que pode significar mais, a eternidade, talvez) ou das células (o que pode significar menos, a transmissão aos vermes que me espreitam lá de baixo). Pois um deslize, um passo adiante e estarei a mil metros de pedaços de carne, osso e sangue tingindo o verde da mata semivirgem e o escorrer intrépido do Rio da Ponte. Um passo que me falta para recuperar a dimensão do invisível e transmudar o tempo. Voltarei ao mundo das possibilidades imateriais da existência, deixando o terreno árido das probabilidades de ser um amontoado de carbono pensante e deprimido.

Devo dizer que já fui, em outros tempos, poderoso e feliz; rei persa, bajulado pelas cortesãs e adorado pelos reinos e senhores de meu tempo; comandante fenício que assaltou e colonizou a Sicília; imperador chinês da dinastia Han, por pouco, não tendo conquistado todo o limite do oceano Hircaniano; senador romano da estirpe dos césares, que, somente pela insidiosa conspiração de Marco Bruto, a quem lealmente ajudei a destruir Caio Júlio, não me tornei um; papa, sim, fui, a enfrentar as intempéries e os destemperos de monarcas infiéis ou simplesmente incompetentes; Grão-mestre dos Templários, tendo sob minha espada subjugado mais de duas centenas de chefes islâmicos, e, de menor importância, fui ainda reitor da universidade de Bologna.

Nem tão poderosa assim, mas talvez a mais saudosa de minhas vidas tenha sido mesmo a que vivi nos esconderijos amorosos de Catarina Romola, uma jovem da linhagem dos Médici, que aprendera muito bem em Florença as artes da mesa, mas nada, absolutamente nada, as artes da cama. Ninguém conta, a história omite, mas Catarina não tinha gosto pelo amor, nem recebeu de Henrique (com quem, sob encomendas da política, casou-se) os cuidados e paciência para aprender a gostar dos prazeres mais carnais que as travessas cheias de caças, massas e profiteroles.

Henrique, rei feito, preferia Diana, sua profana e verdadeira mulher, no sentido próprio das conjunções carnais (assim mesmo no plural, como ela aos meus olhos e desejo por mais de uma vez demonstrou ser mestre e doutora), que a mim recorreu numa tarde quente e seca de verão, diante dos boatos na corte de que era necessário um herdeiro para o trono e, claro, de novas núpcias para o rei que, venhamos e convenhamos, Diana que me perdoe onde estiver, era mal acabado e tinha um hálito de porco selvagem. Não queria uma terceira e, poderia ser, uma fatal concorrente. Pois foi pelas mãos de Diana (e de outras promessas segredosas) que fui levado aos encontros com Catarina. Insípida no começo, fez-se toda charme e volúpia, depois que usei de algumas peraltices e estratagemas de amante, que só a vida nos bordéis da França ensina. Não era de toda feia ou deselegante como dizem até hoje os desavisados ou me dizia a ciumenta Diana. Tinha uns lábios firmes e pronunciados como quisessem saltar da própria boca ou enfiar-se nos desejos alheios com ardor, além de um nariz e testa que sobressaíam às maçãs (quase) esguias da face, sobretudo nos instantes em que tremia de prazer.

Assim foi que, creio eu, embora ela não nunca me tenha confirmado, certamente por conveniência e discrição, fizemos dois herdeiros ao trono francês no crédito do fanfarrão Henrique. Assim foi que chorou, mesmo depois de não nos encontrarmos mais havia quinze anos, quando soube que tinham me confundido com um protestante e me cravado um punhal bem no cruzado entre a jugular e a glote. Creio sim que chorou e ainda mais se enlutou desde então até morrer de tristeza alguns anos depois. Como adorei aquela mulher, feia que fosse (e não era, repito), seus defeitos, seu gênio, suas manias e, principalmente, a forma tenra com que acolhia meu amor plebeu. Entendo por que me proibiu de vê-la quando se fez rainha, entendo suas razões de ter preferido os filhos e a França a mim, simples amante nascido e criado nos esgotos fedorentos de Paris. Quem ama perdoa por trair e por trair-se. O amor puro e imenso não conhece a vontade de domínio, de apropriação ou exclusividade. Às vezes, afastar ou afastar-se é a melhor forma (não a mais prazerosa, todavia) de amar. Por isso, entendi aquele adeus. Talvez a amasse mais do que ela a mim. Importa que amamos, que amei.

Depois desse tempo de devoção profunda, não mais voltei a esse plano de carbonos, limites, tempo e probabilidades, senão agora como residente de um lugar distante, sem posses, sem poder, sem amor, quem sabe sem alma, apenas um corpo à disposição do destino. Talvez uma prova, talvez o epitáfio. Então me resolvi pôr na altura quase do Itacolomy e, em meio à beleza de sempre-vivas e dessas paisagens exóticas para o meu gosto refinado pelo tempo, lançar-me às planuras aladas dos sonhos e retornar aos fantasmas que escrevem minha história desde a Pérsia à França. Voltar ao que sou como essência, ar e poesia. Nada mais. Sequer aspiraria, não agora, à Catarina.

Se essa neblina me deixar, não mais há de me haver, de me contar, de me conter um 21 ou 22 de setembro de qualquer ano, de qualquer século. Assim, no fim, o rio me espera na frieza de suas águas intranquilas. E serei, enfim, mistura eterna de tudo que há e se faz matéria dos sonhos e das inspirações universais. É o que basta e terei para viver, mais que viver, existir. Atemporalmente. 


Post-scriptum: Se alguém estiver a ler essa mensagem, terei renascido. Ou quem sabe nunca terei vivido (além da mistura em que me supunha transformar).

domingo, 18 de setembro de 2011

O sonho de Descartes

Um bom resumo do pensamento, contribuição e estado da arte do pensamento cartesiano foi publicado neste dia 18/9/2011 pela Folha de S. Paulo no Ilustríssima, escrito por Cesar Benjamin.
Veja alguns pontos do resumo

O sonho.


DEZ DE NOVEMBRO de 1619. Trancado sozinho em um quatro aquecido, que ele chama de "estufa", sentindo a chegada do inverno alemão, um homem vive intensa excitação intelectual. "Fatigou-se de tal maneira", conta Adrien Baillet, seu primeiro biógrafo, "que seu cérebro se incendiou, entregando-se a uma espécie de frenesi". Deita-se e tem três sonhos em sequência, nos quais, ao acordar, reconhece uma missão. Implora a Deus e à Virgem que o mantenham no reto caminho para realizar a descoberta que havia antevisto.
O homem é René Descartes, então com 23 anos. Recebe em sonhos a missão de bem conduzir sua razão, e o que pede aos céus é confiança em si mesmo.

A dúvida

Para não correr o risco de se enganar, Descartes decide considerar falso o que é só verossímil. Começa, pois, por submeter tudo à dúvida: "Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Fixo-me bem que nada existiu de tudo o que minha memória me representa. Penso não ter nenhum órgão de sentidos. Creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são invenções do meu espírito. Então, o que posso considerar verdadeiro?"

O cogito

"Embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. Observando que essa verdade, 'penso, logo sou', era tão firme e sólida que nenhuma das mais extravagantes hipóteses dos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que podia aceitá-la como o princípio primeiro da filosofia que procurava".

Deus


Esse eu que existe é um ser finito, imperfeito e, acima de tudo, contingente, como contingente é tudo o que o cerca: eu existo porque meus pais existiram e se conheceram, essa mesa de madeira existe porque existiu uma árvore, que por sua vez nasceu de uma semente, e assim por diante.

Nossa mente só encontra repouso quando propõe a existência de um ser de outro tipo: infinito, perfeito e necessário. Existe esse ser? Sim, por definição, pois a existência é um atributo da perfeição: um ser perfeito inexistente é uma contradição em termos. É o argumento ontológico de santo Anselmo.

Deus, as leis da criação e a razão descobridora por meio do método

Descartes conclui que não é possível que um ateu seja homem de ciência, pois não deve confiar na razão quem não crê na realidade última que a legitima.
No ato de criar o mundo, esse ser necessário fixou as leis de seu funcionamento, para que a criação perdurasse. Com o uso da razão, que nos deu, podemos descobri-las.
Poderia a razão assumir tão elevado papel? O pensamento tradicional, ancorado na revelação, era seguro de si. Faltava demonstrar que um novo pensamento sistemático poderia encontrar um caminho próprio para descobrir a verdade, construindo uma consistente teia de conceitos, com princípios e normas universais que não fossem mera opinião. Imensa tarefa.
O simples acúmulo de evidências empíricas jamais poderia estruturar um conhecimento alternativo e firme. Quem poderia fazê-lo era o método. Haveria de trabalhar com ideias claras e distintas, articuladas segundo regras igualmente claras de análise e de síntese, "graças às quais todos quanto as observem jamais possam supor verdadeiro o que é falso e cheguem ao conhecimento sem se fatigar com esforços inúteis".
A matemática mostrava o caminho: "As longas cadeias de raciocínios simples e fáceis, que os geômetras usam para chegar às suas demonstrações mais difíceis, me fazem supor que todas as coisas que caem no escopo do conhecimento humano interligam-se da mesma maneira." Deve ser possível construir uma ciência pura das relações e das proporções que independa das peculiaridades de cada objeto. É a "mathesis universalis", Na busca da verdade, os antigos colocavam em pé de igualdade a demonstração analítica, fundada na lógica formal, e a argumentação dialética, que se move no campo do que é meramente provável e extrai conclusões verossímeis, tentando persuadir. Descartes rompe essa longa tradição. Tudo é analítica.

As críticas


Gaston Bachelard sugere que não há métodos perenes, pois todos envelhecem: "Chega sempre a hora em que o espírito científico só pode progredir se criar métodos novos" ("O Novo Espírito Científico", Tempo Brasileiro, 2000). Paul Feyrabend radicaliza essa ideia e propõe uma espécie de anarquismo metodológico: "O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale" ("Contra o Método", Editora Unesp, 2007).
Karl Popper também se afasta da abordagem cartesiana. Para ele, a procura de um método é um problema sem solução, pois, quando buscamos um critério para distinguir o que é certo e o que não é, somos remetidos à questão de saber se esse critério é certo ou não, e assim indefinidamente.
Todas as teorias são conjecturas. O que diferencia as teorias científicas das demais é tão-somente que as primeiras são formuladas de maneiras que as deixam expostas à refutação.
Contra o programa de Descartes, Popper afirma que o conhecimento científico não acumula um estoque crescente de verdades irrefutáveis, pois vive imerso na dialética de conjecturas e refutações. As teorias válidas, em cada momento, são as que ainda não foram refutadas. Teorias incertas, ideias injustificadas e antecipações ousadas são essenciais ao progresso da ciência, pois desempenham o papel de programas de pesquisa. Sem elas, não há mutações.


Leia na íntegra aqui



domingo, 4 de setembro de 2011

Corrupção faz Brasil perder o equivalente a uma Bolívia

Pelo menos o valor equivalente à economia da Bolívia foi desviado dos cofres do governo federal em sete anos, de 2002 a 2008, informa reportagem de Mariana Carneiro, publicada na Folha deste domingo, 4/9/2011.

Cálculo feito a partir de informações de órgãos públicos de controle mostra que R$ 40 bilhões foram perdidos com a corrupção no período --média de R$ 6 bilhões por ano, dinheiro que deixou de ser aplicado na provisão de serviços públicos.

Com esse volume de recursos seria possível elevar em 23% o número de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família --hoje quase 13 milhões. Ou ainda reduzir à metade o número de casas sem saneamento --no total, cerca de 25 milhões de moradias.

O montante apurado faz com que escândalos políticos de grande repercussão pareçam pequenos.
Leia ainda:

domingo, 28 de agosto de 2011

Marx explica o século XXI

Bom texto de Toledo Jr, publicado pela Folha de S.Paulo de 28/8/2011, que, a pretexto de fazer uma resenha de textos atuais sobre a atualidade das teses marxistas, traz uma boa análise da realidade atual. De volta para o futuro. Marx consegue dar conta do século XXI?
As recentes crises financeiras mundiais e as transformações no comércio, na produção e no mercado de trabalho põem à prova o marxismo, teoria que vicejou nos séculos XIX e XX para ter sua morte (ou crise) decretada na virada do século XXI. Livros aproximam a economia atual da era vitoriana, que inspirou "O Capital". A artigo é de Joaquim Toledo Jr. e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-8-2011. Em comentáio publicado em 8 de agosto de 1853, o correspondente internacional do "New York Tribune" Karl Marx (1818-83) concluía que o desdobramento necessário do colonialismo britânico no subcontinente indiano seria o cumprimento de duas missões: "uma destrutiva, a outra regenerativa - aniquilar a velha sociedade asiática e estabelecer os fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia". À luz das sensibilidades contemporâneas, a afirmação surpreende pela aparente defesa do sistema colonial do século XIX - fundado em relações comerciais impostas pelo poder de intimidação da esquadra inglesa, como o próprio Marx apontou em seus artigos sobre os britânicos na China. Surpreende também a aparente confiança nos benefícios da presença britânica na Índia: a imposição de unidade política ao subcontinente ("a primeira condição para sua regeneração"), sua inserção no circuito comercial europeu (que o salvaria de sua "posição isolada, o motivo maior de sua estagnação"), a construção de ferrovias, linhas telegráficas e sistemas de irrigação, o estabelecimento de indústrias. Marx saudava, ainda que sem ilusões, a incubação de um processo de modernização que, embora fosse do interesse dos colonizadores, não deixaria de beneficiar os colonizados. Apesar de essa regeneração ainda não estar visível em meio às ruínas da sociedade indiana tradicional, para Marx, no entanto, ele "já havia começado". Um aparente escorregão daquele que é, muito provavelmente, o maior crítico da modernidade capitalista: confiar em benefícios colaterais de uma relação desigual de exploração e apostar na força progressista da "modernização capitalista". FILHO REBELDE Essa ambiguidade é prova de que a obra de Marx é manifestação do que se convencionou chamar de "dialética da modernidade", da qual o próprio pensador e a tradição que fundou oferecem a teoria mais completa e a crítica mais incisiva. Filho rebelde do liberalismo e do iluminismo europeus, o marxismo tem oferecido nos últimos 160 anos o instrumental teórico mais sofisticado para a compreensão da natureza contraditória da sociedade moderna. Como lembra o sociólogo sueco Göran Therborn ["From Marxism to Post-Marxism?", Verso Books, 208 págs., R$ 37], o marxismo sempre afirmou os traços progressistas do capitalismo, da industrialização e da urbanização, enquanto denunciava a "exploração, a alienação, a ubiquidade da forma mercadoria, a instrumentalização das relações sociais, a falsa ideologia e o imperialismo" inerentes ao processo de modernização. Repensar o marxismo hoje pressupõe atualizar essa interpretação crítica da sociedade capitalista contemporânea em dois registros, antagônicos mas complementares: reconhecer e ampliar os avanços tecnológicos, culturais, políticos e sociais que acompanham o desenvolvimento econômico capitalista - ou sobrevivem a ele - e seus efeitos destrutivos. ESPAÇO GLOBAL Para Therborn, o marxismo precisa dar conta de uma dimensão tradicionalmente marginal no próprio Marx e no marxismo em geral: o espaço do processo (desigual) de acumulação capitalista. Não é de hoje que esse é um espaço global, como já notaramMarx e Engels (1820-95) em seu "Manifesto Comunista" (1848); mas a conectividade global contemporânea é de uma densidade sem precedentes. O espaço socioeconômico, cultural e geopolítico do século XXI é "radicalmente diferente daquele do século XX", que foi, acima de tudo, o último século eurocêntrico. O cenário geopolítico do século XXI, por sua vez, é mais aberto e descentralizado, e o poder militar norte-americano, hegemônico desde o desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-45), está hoje em descompasso com a emergência de potências econômicas, na Ásia mas também na América Latina, e com o surgimento de uma "nova rede de Estados nacionais" e a intensificação das relações sul-sul. CAPITALISMO LIBERAL Essa reconfiguração, sinal da diminuição das disparidades de influência política e força econômica entre regiões e nações, convive, no entanto, com o aumento global da desigualdade de renda e com a desarticulação da classe trabalhadora, na qual não só a teoria como a prática política marxista haviam depositado suas esperanças. Nesse sentido, o que parece que vivemos nesse começo do século XXI é um retorno ao capitalismo liberal do século XIX. Para Fredric Jameson, a crise atual pede uma releitura de "O Capital" (1867), a grande obra teórica de Marx. Em seu trabalho mais recente, "Representing 'Capital' - A Reading of Volume One" [Verso Books, 176 págs., R$ 55,70], o teórico norte-americano remexe as cinzas desse que é sem dúvida um dos maiores feitos intelectuais de seu século e investiga duas de suas dimensões fundamentais. Uma é formal - entender como Marx consegue oferecer uma representação (teórica, mas que lança mão de recursos literários de figuração, a que Jameson chama "protonarrativos") da "totalidade do sistema capitalista". "O Capital" resultaria de um "tour de force" de composição não muito diferente daquele que animou o projeto da "Comédia Humana" de Honoré de Balzac (1799-1850): representar, com os meios limitados da exposição teórica na forma de um quase "tratado" (e de sua prima-irmã, a narrativa realista), um sistema em que cada uma das partes remete a todas as outras, e na qual qualquer ponto pode ser tomado como início ou como fim. Da mesma forma, o escritor francês procurou retratar, com seu conjunto de romances, a totalidade da complexa sociedade francesa da Restauração. Segundo a leitura provocativa de Jameson, "O Capital", como forma, precisa enfrentar o desafio de oferecer uma visão total de processos que aparecem, na experiência social, fragmentados. O argumento progride segundo a resolução parcial de dilemas ou contradições específicas, de forma potencialmente mais clara, o que por sua vez resulta na expansão do próprio objeto - o capital. DESEMPREGO A segunda dimensão fundamental de "O Capital" é socioeconômica: para Jameson - e a afirmação, ainda que questionável, não podia ser mais atual - "O Capital" é um livro sobre o desemprego e, mais especificamente, sobre como o desemprego é "estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo". A constatação joga a categoria de exploração econômica no centro do palco -em prejuízo, no entanto, da categoria política de dominação: a classe trabalhadora global contemporânea, que em sua precariedade e vulnerabilidade lembra justamente a miséria dos trabalhadores da aurora da revolução industrial, são os "portadores de um novo tipo de miséria histórica e global" que comprovam o caráter estrutural do desemprego e do emprego precário no capitalismo. Haveria uma possibilidade promissora de mudança teórica que acompanha a reinterpretação dessas "populações perdidas" em termos não de dominação política, mas de exploração econômica. Uma releitura de "O Capital" nesses termos nos força a renovar o compromisso com a "invenção de um novo tipo de política transformadora em escala global", para além das tentativas, de mitigação dos efeitos perversos do capitalismo. ESPAÇO CONSTRUÍDO Para David Harvey, no entanto, em "The Enigma of Capital" [Oxford University Press, 304 págs., R$ 37,90], a crise atual do capitalismo tem raízes mais particulares e concretas, e está associada a um curto-circuito no ciclo de investimento no "espaço construído" iniciado no pós-Guerra. A urbanização, processo que acompanha desde sempre o desenvolvimento capitalista, como atestam o surgimento das cidades industriais inglesas e a reestruturação de Paris pelo barão Haussmann, se tornou, explica Harvey, "um dos grandes negócios sob o capitalismo". As conexões entre urbanização, acumulação de capital e formação de crises merecem, segundo o geógrafo britânico, uma análise cuidadosa. Os ganhos (e perdas) que advêm da criação de novos espaços e de novas relações espaciais seriam recorrentemente ignorados como "um dos aspectos fundamentais da reprodução do capitalismo". Para quem conhece cidades como Pequim ou São Paulo, isso não é novidade. No centro da crise atual, por diferentes motivos EUA e Espanha viram-se reféns de modelos em muitos aspectos parecidos, centrados na expansão do mercado imobiliário, acompanhada de uma transformação das estruturas administrativas e financeiras que viabilizou um mercado fundado principalmente no endividamento da classe trabalhadora. A aposta, no entanto, na "valorização infinita" dos bens imobiliários e na capacidade de repagamento das dívidas pelas famílias (junto com os malabarismos financeiros possibilitados pela desregulamentação do mercado de crédito) levaram ao efeito dominó que derrubou Bolsas e mercados planeta afora. O boom imobiliário e a explosão da bolha revelam a tendência real, para Harvey, do capitalismo global desde pelo menos meados da década de 1970: queda de produtividade (e da lucratividade dos investimentos produtivos), acompanhada de um excesso ("surplus") de capital que precisou ser reinvestido na construção de novos espaços. O esvaziamento das cidades americanas e a taxa de desocupação de imóveis novos na Espanha são o resultado dessa movimentação do capital que, como não raramente acontece, deixa em seu rastro espaços inutilizados ou devastados. PÚBLICO E PRIVADO A perspectiva de Therborn também conduz a uma conclusão um pouco menos abstrata e mais realista do que a de Jameson, se não exatamente otimista. A pergunta relevante, nesse caso, nos joga em um campo crucial para as análises marxistas: o jogo entre o poder público e os atores privados, entre Estados e mercado, e diz respeito à capacidade do Estado de desenhar e implementar políticas públicas, sejam elas de coordenação (políticas de desenvolvimento econômico, por exemplo), sejam políticas sociais (como programas de transferência de renda). As décadas recentes "testemunharam sucessos surpreendentes de políticas estatais", como o controle da inflação e a criação de organizações interestatais regionais -apesar da persistência do desemprego mesmo em regiões desenvolvidas como a União Europeia, onde as políticas de bem-estar têm sido capazes, pelo menos até esse momento, de proteger os desempregados da pobreza "ao estilo norte-americano". Estados nacionais, regiões e cidades diferem, naturalmente, em sua capacidade de implementar políticas públicas, mas, para Therborn, o padrão não aponta para uma diminuição geral dessa capacidade. "Certamente", conclui, "as políticas de esquerda têm tido mais dificuldade para serem implementadas, mas isso deriva não tanto de falhas dos Estados quanto da paralisia da coordenação política resultante de governos de direita" ("conservadores acreditam que o governo é ineficiente", diz um ditado corrente, "e se elegem apenas para provar que estão certos"). POLÍTICA A leitura de Jameson, totalizante e antipolítica como o marxismo filosófico corre o risco de ser, também perde de vista a multiplicidade de caminhos políticos tomados desde o pós-Guerra. O Estado de bem-estar social europeu e o Estado desenvolvimentista asiático, passando pelos "novos" movimentos sociais (as lutas por direitos civis, o feminismo, o ambientalismo etc.) aos governos latino-americanos de esquerda, indicam que, como afirma o crítico inglês Terry Eagleton, Marx "estava certo" [Why Marx Was Right, Yale University Press, 272 págs., R$ 55,80]. A denúncia e o combate à exploração, à desigualdade e à dominação são centrais hoje como eram no século 19. Ninguém ficaria mais contente com o "fim" do marxismo do que os próprios marxistas, diz Eagleton. Isso seria sinal de que a tarefa histórica a que se propuseram -a superação da exploração e da desigualdade, ou do capitalismo- estaria cumprida. Ironicamente, no entanto, o marxismo é declarado morto, ou fora de moda, justamente pelos defensores contemporâneos de um capitalismo que rapidamente "reverte a níveis vitorianos de desigualdade." A suposta crise do marxismo, no entanto, é antes reflexo das transformações sociais, econômicas e políticas das últimas três ou quatro décadas. Desde o início dos anos 1970, o por assim dizer "centro" do sistema capitalista - Europa e EUA - assistiu à transição de suas economias baseadas em manufatura para uma cultura "pós-industrial" da sociedade do consumo, das novas tecnologias de comunicação e da economia de serviços. As causas e consequências dessa mudança podem ser atribuídas ao refluxo dos anos de crescimento econômico explosivo do pós-guerra, mas também à escalada do conservadorismo político. De Margaret Thatcher, no Reino Unido, a Ronald Reagan, nos EUA (e, para pegar um exemplo regional em versão mais explicitamente truculenta, Augusto Pinochet, no Chile), os novos conservadores tocaram o processo de desregulamentação dos mercados, submeteram os movimentos de trabalhadores a ofensivas legais e políticas e criaram um suposto consenso contra políticas sociais estatais (que, no caso dos EUA de Reagan, não deixou de ter contornos raciais e somou-se à reação conservadora contra o movimento dos direitos civis dos anos 1960). O resultado é um ambiente político que, com a destruição das lealdades de classe e o estímulo à fragmentação da sociedade civil, é cada vez mais cínico, administrado e manipulado. O quadro atual, para Eagleton, faz ainda mais urgente a crítica marxista: em escala global, "o capital é mais concentrado e predatório do que jamais foi" e a classe trabalhadora, longe de ter desaparecido, aumentou em tamanho. Prova disso é o rápido processo de urbanização e industrialização em curso no sul global. URGÊNCIA Para Eagleton a crítica marxista, no entanto, não pode resultar nessa forma bem-intencionada de resignação que é o pensamento utópico. O marxismo é atual não apenas como referencial teórico para as ciências humanas ou como crítica filosófica da modernidade -ele sempre carregou consigo as exigências políticas (e morais) mais urgentes para a sociedade contemporânea. No último século e meio, foi capaz de aglutinar os mais diversos movimentos anticapitalistas, sejam os "tradicionais" movimentos trabalhistas, sejam os novos movimentos sociais. Se as reflexões de Eagleton têm algo de pastoral, ou de evangelho de um crente já cansado demais para abandonar suas certezas, elas reafirmam um conjunto de princípios - racionalidade, autonomia, igualdade - herdados, sem dúvida, da tradição iluminista burguesa, mas radicalizados pela crítica marxista e encampados nas diversas lutas anticapitalistas dos séculos XIX e XX - e deste século XXI. Se as desigualdades de poder e riqueza, se as guerras imperiais, a intensificação da exploração e a atuação cada vez mais repressiva dos Estados caracterizam o mundo contemporâneo, a crítica marxista - cujos temas fundamentais são exatamente esses - é tanto mais pertinente e urgente. "O capitalismo", diz Eagleton, "e não o marxismo, deveria estar fora de moda." É tempo de abandonarmos o mito de que a "riqueza fabulosa" - material ou imaterial - que o capitalismo é capaz de gerar estará, no final, à disposição de todos.

domingo, 21 de agosto de 2011

Contraponto: Why Environmentalism is Conservative - David Biello

Some politicians seem to have it in for the environment these days. Whether its presidential hopeful Rick Perry denouncing climate science as a quote "cult" or his more moderate peer Jon Huntsman calling for environmental regulations to be put on hold until the economy improves, it's clear that protecting our air, water and other natural resources is no longer fashionable.

But their Grand Old Party actually started environmental protection in the first place. Richard Nixon signed into law most of the nation's landmark environmental laws and founded the Environmental Protection Agency back in 1970.

A bit further back, Teddy Roosevelt founded the national park system, among other efforts to conserve the natural heritage of the United States.

Of course, there are politicians on both sides of the aisle interested in preserving the environment and some conservatives accept the preponderance of scientific evidence on human-caused climate change, like Huntsman. And it's not like Democrats never despoil. Witness the longstanding protection of coal mining by virtually all West Virginia politicians.

But for the moment, some conservatives seem to have forgotten that conservation is inherently conservative.

Fonte: Scientific American