“Direitos reprodutivos” é o nome dado à liberdade de autodeterminação reprodutiva. Trata-se do direito fundamental de indivíduos ou casais decidirem de forma livre e responsável a hora e vez de terem seus filhos. Aparentemente é um direito de não intervenção: o Estado não pode imiscuir-se no exercício do direito, por exemplo, estabelecendo número de filhos por casal, proibindo-os a pais solteiros ou mesmo vedando o abortamento. Não pode haver, portanto, coerção nem recursos discriminatórios que imponham aos titulares a adoção de um comportamento não desejado. Até aí, nada de novo.
Entretanto, na sua dimensão objetiva ou, segundo o linguajar corrente no direito, do lado dos deveres, encontram-se as tarefas de o Estado (e a sociedade) disponibilizar as informações necessárias e os meios adequados para suas decisões, incluindo, por óbvio, serviços de saúde sexual e reprodutiva, bem como uma política social e econômica inclusiva. A justiça social introduziu-se no discurso desses direitos como instrumento de garantia: a justiça na reprodução depende da justiça na vida.
Como vemos, é um direito fundamental que perpassa a classificação de direitos de defesa e de prestação. Sua aparição no rol de direitos humanos se deu com a Proclamação de Teerã de 1968, seguida da Declaração sobre o Progresso e Desenvolvimento Social, aprovada pela Assembléia da ONU em 1974. Foi no Programa de Ação da Cidade do Cairo, adotado em 1994 pelo Fundo das Nações Unidas para Atividades Populacionais, UNFPA na sigla inglesa, que os olhos se voltaram para a dimensão “positiva” ou prestacional dos direitos reprodutivos, exigindo-se ações afirmativas por parte da comunidade internacional e dos Estados.
A titularidade do direito inicialmente se restringia à família ou ao casal. Entretanto, diversos movimentos nacionais e externos, envolvendo até mesmo órgãos das Nações Unidas, como o próprio UNFPA e a OMS, passaram a dar prioridade às ações voltadas para a proteção dos direitos das mulheres. A razão é simples: é a mulher quem mais sofre com as políticas reprodutivas em todo o mundo, e é, sem dúvidas, a mais discriminada, seja no âmbito sexual e reprodutivo, seja nos domínios sociais e econômicos.
A ligação entre a sexualidade e o poder fica evidente: não se poderão efetivar os direitos reprodutivos sem que, simultaneamente, sejam adotadas as medidas necessárias para vencer o preconceito contra as mulheres e a discriminação que sofrem no trabalho, na política, no acesso à educação e cultura. Direitos reprodutivos e “justiça reprodutiva” são lados complementares da moeda jurídica e existencial.
Há, ademais, que fazer uma distinção bem pouco feita entre direitos reprodutivos e direitos sexuais. Embora relacionados, há diferentes conteúdos e ênfases. Enquanto a autodeterminação reprodutiva está associada ao planejamento familiar, família tomada em sentido amplo, como unidade formada inclusive entre pai ou mãe e seu descendente, os direitos sexuais se voltam mais para a autodeterminação sobre a sexualidade, importando dizer que ninguém pode ser obrigado, psicológica ou fisicamente, ao intercurso sexual. Mas não só: cabe ao Estado (e à sociedade) a adoção de uma série de medidas educacionais e de serviços de saúde destinadas a possibilitar o prazer sexual.
A distinção tem sido advogada pelos movimentos feministas, alertando para a invisibilidade dos direitos sexuais no temário dos direitos reprodutivos. A voz deles tem sido ouvida, pelo menos, em parte. A Declaração de Pequim, aprovada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada na capital chinesa, pela ONU, no ano de 1995, por exemplo, reconheceu o direito de todas as mulheres a não sofrerem dano, violência ou coerção para, nas e em decorrência de suas relações sexuais.
A ampliação do conteúdo do direito, considerando-o como autodeterminação sexual atribuída a todo ser humano, foi defendida pela Federação Internacional de Paternidade Planejada, IPPF em inglês, organismo com representação em mais de 150 países, por meio da aprovação da primeira declaração mundial dos direitos sexuais no início de junho de 2009. No princípio quarto está escrito: “a sexualidade e o prazer dela derivado são aspectos centrais do ser humano, independente de a pessoa escolher reproduzir-se ou não.”
Evidente que a idéia de justiça e direitos reprodutivos, bem como de direitos sexuais não se circunscrevem apenas ao mundo feminino ou à terra de Afrodite. Onde houver opressão reprodutiva, ali se poderá falar de justiça e de direitos reprodutivos: a mulher negra ou cabocla é mais discriminada que a branca, diga-se o mesmo entre a pobre e a rica ou pense nas particulares situações dos portadores de necessidades especiais, dos homoafetivos, dos imigrantes, das crianças e adolescentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário