Um amigo ambientalista reclamou de uma piada de mau gosto para um defensor da Constituição e dos direitos: não poderia tratar com desdém um assunto de tamanha importância como os direitos dos animais. Tudo por causa de uma brincadeira que me arrisquei a fazer sobre o problema jurídico surgido no divórcio de um casal de amigos: com qual dos dois ficaria Brigitte, um filhote de Heepdog, com Maria, que a havia levado para casa à revelia do marido, ou com Arthur, que, ao fim, era quem dela tratava? Depois de longa disputa judicial, houve acerto sobre guarda e o direito de visita. Mas eu levei comigo a bronca e a preocupação.
Estaria em curso uma onda nova de direitos fundamentais? A pergunta pode ficar mais complicada, embora desnecessária para o ecobedel: é possível falar na titularidade de direitos, fundamentais ou não, por animais? Do ponto de vista estritamente jurídico ainda é possível dizer que não. Amanhã, quem sabe?
Muita gente não concorda. Já seria possível enxergar um novo ramo do direito que lidaria com os interesses dos animais, pouco importando se os tomasse como objeto ou como sujeito. Vá lá, consintamos, pois não é de hoje que existem leis de proteção aos animais.
No começo, visava-se a evitar o tratamento cruel dos bichos pertencentes a terceiros. A tutela jurídica era, assim, reflexo do direito de propriedade. Foi o caso do
Código Penal francês de 1791 (art. 36, tit. II, seç. II) e da Lei Grammont, também na França, bem como da Lei inglesa de 1822 (Martin’s Act) e do Código Penal português de 1886.
Um segundo ciclo de leis surgiu com o propósito de proteger os animais sem referência direta a interesses patrimoniais. Antes, cuidava-se de uma exigência ética ou, quando menos, utilitarista de sua proteção. A manifestação original desse ciclo se restringia a animais domésticos (Inglaterra em 1849 e 1854) e a pássaros (Espanha em 1896), embora pudesse impor a obrigação de cuidado apenas em ambiente público (Áustria em 1855).
Seu desenvolvimento se encaminharia para impedir genericamente as formas de maus tratos (Itália em 1913 e Alemanha em 1926 e, ainda aqui, a famosa Tierschutgesetz de 1933; Polônia em 1928), especialmente contra a vivissecção (Inglaterra em 1876; Bélgica em 1929 e Itália em 1931) e o emprego de certas espécies em experiências científicas (Inglaterra em 1906). É nesse mesmo quadro que se inscreve a decisão tomada pela Corte Distrital do condado de Hennepin, Estado de Minnessota, ainda no século XIX, incriminando a conduta de um homem que matara um cachorro, ainda que ela tenha sido reformada pela Suprema Corte do Estado.
A partir dos anos 1970, houve um sensível aperfeiçoamento dos sistemas normativos de proteção ao que se passou a chamar de “bem-estar animal”. A ênfase fica a crédito dos Estados Unidos. Já em 1966, foi aprovado o “Animal Welfare Act”, regulamentando o tratamento de animais em pesquisas, exibições, comércio e transporte. Seu texto foi alterado no sentido mais garantista seis vezes entre 1970 e 2007.
Para boa parte dos estudiosos, o Direito dos animais, ramo jurídico autônomo, surgiu apenas nessa fase ou, como disse outro, quando “os advogados começaram a ver o animal como um cliente de facto, e quando o objetivo [da legislação] passou a desafiar as formas institucionalizadas de abuso e exploração animal”.
A restrição às experiências científicas ganhou mais força com o passar do tempo. Um exemplo pode ser extraído da Diretiva comunitária n. 86/609 CEE para a proteção dos animais usados em procedimentos científicos, inclusive na vivissecção, com a preocupação clara de minimizar o sofrimento e a dor. A disciplina européia se tornou mais rigorosa ainda com a aprovação em 1997 do Protocolo sobre proteção e bem-estar dos animais, anexado ao Tratado das Comunidades Européias pelo Tratado de Amsterdã, que os reconhece como seres que possuem sentimentos.
Outro exemplo pode ser buscado na mudança de orientação das políticas públicas relativas aos animais soltos ou extraviados. Se antes seu foco era higienista, desenvolvendo-se pela captura e posterior extermínio das criaturas perdidas, agora a ênfase se volta para a prevenção ao abandono. Em muitos países, como o Canadá, a França e a Itália, o abandono de animais é um tipo penal de relativa gravidade. Como bem notaram Duncan e Fraser, “o bem-estar animal não é um termo que surgiu na ciência para expressar um conceito científico. Antes, ele surgiu no seio social para expressar preocupações éticas relativas ao tratamento dos animais.
Podemos afirmar, a essa altura, que o direito (dos animais) tem evoluído tanto no sentido objetivo, quanto em sentido subjetivo. Tome-se, a respeito deste último aspecto, a modificação havida na legislação suíça a partir de 1992, para reconhecer aos animais o status de ser mais que de coisa ou objeto de direito, roteiro do terceiro ciclo de proteção dos direitos animais. Assim também, tem-se notícia que a Administração Obama desenvolve uma série de normas destinadas a disciplinar os direitos dos animais no âmbito federal, ampliando a legislação existente.
No plano internacional, o destaque fica por conta da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, adotada pela Liga Internacional dos Direitos do Animal, aprovada em Paris em 15 de outubro de 1978, com o apoio da UNESCO. Entre outras disposições da Declaração estão a que proclama que “todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência” (art. 1o). O art. 3º determina que “nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não lhe provocar angústia.” Considera-se ato cruel e degradante o seu abandono (art. 6.2).
Ademais, “todo animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir” (art. 4.1). Assim também, “todo animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie” (art. 5.1).
Em sentido objetivo, a matéria tem ganhado a estatura constitucional. A Constituição brasileira foi uma das primeiras a constitucionalizar o assunto, embora, subjetivamente, ainda estivesse presa ao segundo ciclo de proteção dos direitos animais, ao vedar as práticas que submetam os animais à crueldade (art. 225, VII). Na Suíça e na Alemanha, deu-se importante passo para o tratamento magno do terceiro ciclo.
A Constituição suíça de 1874 foi modificada em 1992 com vistas a promover a “dignificação” da tutela jurídica dos animais. Embora ela tenha sido substituída por um novo texto constitucional, as alterações foram mantidas. Entre os diversos dispositivos que tratam do assunto se projeta o artigo 80 (Proteção dos Animais) que atribui à Federação competência para legislar sobre a proteção anima, especialmente sobre sua guarda e cuidado, experimentos e intervenção em seres vivos não humanos, bem como seu transporte e matança.
A Lei Fundamental de Bonn, por seu turno, sofreu uma emenda em 2002, com vistas a incluir em seu texto o artigo 20a com a seguinte redação: “Atento também a suas responsabilidades perante as futuras gerações, o Estado deve proteger as fundações naturais da vida e os animais por meio da legislação, e, de acordo com o direito e a justiça, pela ação do executivo e do judiciário, tudo em conformidade com a ordem constitucional”.
Já havia outras previsões sobre a proteção dos animais no âmbito das competências federativas (arts. 72.3.2; 74.19 e 20), mas o constituinte derivado, tendo-as por genéricas demais, achou por bem reforçar as suas garantias.
Eis um quadro geral que, de algum modo, ainda que transverso, me despertou Brigitte e o meu amigo ambientalista. Antes de terminar, preciso dizer que entre o início e o fim desse relato se passou um mês, tempo suficiente para o casal divorciado dar-se uma nova chance. Todavia, sem papel passado e outras formalidades de ocasião. Simples união de vontades e desejos que, agora, chamam de amor. Pois não é que Brigitte sumiu de casa? Fugiu sem mais. Querem crer que foi raptada. Ao invés de isso abalar o novo relacionamento, tornou-o mais sólido, pois acharam um motivo para identidade e projeto comum: recuperar o filhote.
Continuo a achar que Brigitte se cansou daquela veneração e sufocamento. Simplesmente, preferiu a liberdade. A porta aberta, o descuido dos dois e, pronto, o mundo à disposição. Tão humanamente previsível quanto sua preocupação com o debate todo sobre os direitos e o estatuto dos animais.
Contra Arthur e Maria, e, em nome dos legítimos interesses da cachorra, eu peço: não tentem encontrá-la e, se por acaso, acharem-na a vagar pelas ruas, deixem-na em paz. São seus direitos e liberdade. Mais que amizade pelos dois, a vontade livre e consciente da fuga deve ser respeitada. O casal que invente outra estima e coisa para adoração. Ou, também é o direito deles, continue a procura inútil do resgate como forma, quem sabe, de preencher o vazio da angústia de viver. A dois principalmente.
Um comentário:
Vou citar dois exemplos ilustrativos acerca dessa questão.
Semana passada vi um cartaz pregado na entrada de uma confeitaria do Lago Norte de Brasília: PROCURO MEU FILHO:FONE 3223333. No lugar da foto tinha a imagem de um cãozinho! Anúncio Meio doido, não é!
A poderosa apresentadora de TV (lixo televisivo) americana, Oprah Winfrey, anuncou recentemente a morte de seu cão. Para ela, "o ser mais confiável com quem já convivi, que vai deixar um buraco horrivel na minha vida". Ela fez seu duneral! Terrível!
Na questão da Oprah, eu até concordo. Só mesmo um cão a aguentaria, seu programa é tão estúpido quanto o do GUGU ou do Sílvio santos!
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