segunda-feira, 6 de julho de 2009

O véu da discórdia

«Signe d'asservissement de la femme, la burqa n'est pas la bienvenue sur le territoire de la République française» (Nicolas Sarkosy)
Até que ponto o Estado pode interferir em nosso estilo de vida, nas nossas orientações religiosas ou na forma de como devemos nos vestir? Antes de responderem que de nenhuma forma ou jamais, devem lembrar-se dos problemas relacionados à pedofilia e à proibição do strip-tease em público ou das seitas com sacrifícios humanos. Logo, é possível que algum nível de intervenção não apenas seja imposto como desejável.
Vemos, noutro canto, o coro de quem repete desde o nascimento da Modernidade: a liberdade de um termina onde começa a do outro. O problema está exatamente na demarcação dessas fronteiras. Isso para não falar que há liberdades que se somam e não se excluem: a de reunião e a sexual, por exemplo.
Há quem diga mesmo que todos os direitos carregam dentro de si a vedação do abuso no seu exercício assim como se existisse uma cláusula interna de amizade (o direito não comporta o ilícito) ou de comunidade (o direito não pode afetar a existência e os valores da comunidade).
Mas estamos diante de novo dilema: o que é abusivo? Depois, certos direitos (ou todos na visão de Dworkin) são exatamente um poder individual contra a maioria. São, de outro modo dito, posições jurídicas que visam a garantir a integridade das pessoas em face da opressão do coletivo, da comunidade, do Estado.
Como justificar uma lei que impeça o suicídio ou a morte assistida? Talvez porque o legislador esteja a dizer: você, morador desse inferno psicológico, é importante para nós. Pouco importando se depois o jogue num manicômio à espera lenta e dolorosa da morte. Talvez para evitar o efeito demonstração: um se mata, dois, mil até faltarem contribuintes.
Dirão alguns que está em jogo uma questão sagrada, religiosa: a vida é valor indisponível. Mas o Estado não é laico? Não é republicano ou, pelo menos, liberal e, portanto, o oposto de todas as formas de paternalismo? Se alguém maior e vacinado desejar a submissão por uma questão de crença, poderá uma lei determinar-lhe que se emancipe, se liberte?
Os franceses, ciosos de seu republicanismo, estão diante exatamente desse desafio. O presidente Nicolas Sarkosy, no primeiro discurso em 136 anos de um presidente francês perante uma sessão conjunta das duas casas parlamentares, Assembléia Nacional e Senado, realizada no Palácio de Versailles em junho de 2009, apoiou a iniciativa de se aprovar uma lei para vedar o uso em lugares públicos da burca e do niqab, véus que cobrem a cabeça e o corpo das mulheres muçulmanas.
Alega que as vestes não são sinais religiosos, mas de mulheres prisioneiras atrás de grades de tecido e simbologias sociais, privadas de identidade e expressão, servas de seus senhores masculinos. Essa demonstração de opressão explícita, de violação da dignidade feminina, seria intolerável em solo francês.
Na segunda metade dos anos 1990, houve intensa polêmica sobre o uso de véus por meninas muçulmanas nas salas de aula daquele país. Os argumentos de violação à liberdade de expressão e crença não impediram que, em 2004, fosse aprovada uma lei que proibia os estudantes de usarem, nas escolas do Estado, os símbolos ostensivos de sua fé. Não apenas o véu muçulmano foi banido, mas também a quipá judia, o crucifixo cristão e o turbante sikh.
A lei fora aprovada pela direita e pela esquerda sob o pretexto de respeitar o espírito republicano e laico das escolas francesas e como forma de impedir o proselitismo. A religião era livre como manifestação da vida privada. E só.
Não precisamos concordar com o exagero do republicanismo francês, mas a questão nos remete a um tema adormecido no Brasil. Em diversos (senão todos) prédios públicos, encontramos manifestação da fé dos agentes públicos: crucifixos, santos, oratórios, orixás. Em alguns casos, de maneira tão explícita que põe, até mesmo os desavisados, em dúvida sobre a imparcialidade, pelo menos contrafactualmente, esperada das pessoas que concretizam os atos estatais.
Em geral, os agentes públicos (juízes, legisladores, executivos) alegam que também têm direito ao exercício de sua liberdade de crença. Tirante a jurisprudência equivocada (e periférica) do STF no sentido de que o Estado e suas instrumentalidades são titulares de direitos fundamentais, é de se perguntar se, em face dos particulares, dos cidadãos, dos jurisdicionados, podem exercer aquela liberdade.
Obviamente: não. Todo servidor público, do mais ao menos graduado, no exercício de sua função pública está despido da condição partidária ou confessional, de indivíduo portador de direitos fundamentais. É, antes, instrumento do agir estatal.
O Estado não pode, por leis ou atitudes de seus agentes, mostrar preferências por opções de vida boa. Esse é o fundamento da laicidade republicana e o conteúdo mínimo que se pode extrair não da experiência francesa, mas do artigo 19, I, da Constituição brasileira.
Parece que Sarkosy está mais preocupado com as eleições francesas do que com a compreensão adequada de republicanismo. Sabe, por certo, que não é legítimo ao Estado ir tão longe na invasão do espaço de autonomia privada mesmo que exercida no espaço público.Do lado de cá, muitos acham que o assunto é pequeno demais para ocupar nosso tempo. Há outras prioridades.
Sim, há. O nosso desafio, entretanto, é enfrentar também as miudezas, principalmente quando são manifestações do velho, surrado, persistente patrimonialismo, mesmo que de âmbito religioso.

Um comentário:

Anônimo disse...

O Sarkozy está certíssimo. O Islamismo é uma religião ultrpassada que necessita de reformas urgentes. A burka, ou seja lá o que for, aquelas grades horrorosas incompatíveis com o século XX devem ser banidas no ocidente. O ser humano não deve andar com aquilo.Não há espaço no mundo moderno para ações primitivas em contato com as soiedades evoluídas (repito evoluídas, cultas sem relativismos). Que voltem para seus estados medievais os torturadores de mulheres. Dr. Adércio deixe esse assunto pra outros, o Direito não entende dessas coisas.