Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? (Marco Túlio Cícero)
Volevo uccidere te. La mia mano ha errato e ora la punisco per questo imperdonabile errore. (Múcio Scevola)
O Senado romano era visto como uma reserva de sabedoria ética e política, garantida pela idade de seus membros. Senatus originava-se de senex, velho, antigo, guardião das tradições. A experiência dos cabelos brancos, associada a uma estirpe de nobres (pater famílias), parecia a forma mais bem aparada da política a equilibrar justiça e segurança Era, por isso mesmo, a expressão máxima da república romana, do governo do bem comum e da ética, tanto que administrava as finanças públicas e a política externa, bem como ainda controlava as atividades executivas dos cônsules e a prestação da justiça. Podia, além do mais, fiscalizar a conformidade das leis com os costumes e os procedimentos de sua elaboração.
Os seus inimigos estavam, entretanto, sempre à espreita de uma falha de caráter dos senadores ou da corrupção dos costumes. Pois foi ela, a corrupção, expressa no desejo privado e na ganância incontidos, que estimulou Catilina a concorrer ao cargo de cônsul e, após a derrota nas urnas, a tentar virar o jogo pela força. Para ele, somente a tomada do poder seria a solução para os seus problemas financeiros, agravados pelo vício e pela prodigalidade. Fosse pelo voto, fosse pelo braço.
O Senado ainda tinha autoridade moral bastante para enfrentar o intento do rebelde. A voz de Cícero se tornou recorrente na história contra o assalto à ética na política. Disse ele: “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio?”
Cícero não poderia imaginar que o inimigo surgiria dentro dos próprios guardiões tempos depois. A ruína dos valores republicanos levou tanto a nomeações de ditadores para enfrentar rebeliões populares como de fortes generais para açambarcar novas terras em guerras sucessivas, preenchendo depois o vazio da virtude em território próprio. A orientação política de produção de bem para a coletividade girava na direção das vantagens privadas, corroendo os alicerces morais da República. Assim como sucedera com Atenas, ao cair no braço forte de Draco e, pela mesma brecha, no de Felipe da Macedônia, o Senado sucumbiu a Júlio César.
É certo que os senadores tentaram lavar a honra institucional assassinando-o com vinte e três punhaladas num esforço de transpor para a esfera pública o poder-dever punitivo que o pater famílias detinha no ambiente doméstico. Como se sabe, o chefe da família tinha de restaurar a honra da unidade familiar com a punição, especialmente por meio do assassinato, de quem, porventura, desrespeitasse um de seus membros, principalmente do sexo feminino, e, se necessário, a estes também, como forma de uma higiene moral completa. E sob pena de os seus pares impingirem-no severas penas pela própria desonra de não revidar.
A decência senatorial, contudo, já se havia perdido na esfera pública com o exílio da finalidade do bem comum, de nada valendo a tentativa quase teatral e trágica de sua restauração com as regras da honra privada. Bem ao contrário. Com o gesto, a virtude deu lugar em definitivo à corrupção, tanto que o filho adotivo e sobrinho-neto da vítima, Otávio Augusto, não teve maiores dificuldades em por fim ao regime e ao poderio do Senado, dando origem ao Império.
Note-se que a corrupção, para os antigos, era algo bem maior do que o mero locupletar-se do dinheiro público. Era desonrar a virtude, ou a procura política do bem comum, travando-se a batalha mesquinha de conquista do poder, do domínio e, apenas secundariamente, de riqueza. Se, na era vitoriana, essa corrupção foi identificada mais no plano da imoralidade sexual, reprimida por graves padrões de sexualidade e reprovações públicas, com a Modernidade, ela se tornou predominantemente econômica, impondo ao mercado político as trocas de favores, o clientelismo e as propinas.
Hoje, a corrupção é uma farsa de virtudes compostas por uma falsa moral sexual, uma oca retórica do bem comum e uma falaz probidade pública. A república tornou-se um rótulo e uma fachada jurídica e política, a encobrir o seu oposto. A ética como a moral não a sustentaram, pois, para muitos, elas mesmas perderam seus referenciais; viraram pó, coisa privada e terra de ninguém.
Como falar, num mundo desse, em dever cívico, em ser virtuoso e em se matar por uma causa, feito Muzio Scevola, sem decair para o submundo da intolerância fundamentalista, negando o selo comunitário da própria república? Como republicizar a esfera pública, destronada pelo mundo dos direitos privados e dos projetos individuais de felicidade, sem acabar com as liberdades civis? Como, enfim, restaurar o caráter do homem público nessa moda massificada e difusa de valer-se da política como meio de enriquecimento rápido e fácil à custa da fome, do analfabetismo, da doença e da exclusão de milhões?
Parados é que não podemos ficar diante desse repertório infinito de desrespeito com a ética, com a virtude e com a confiança pública. Privatizações a preços miúdos, superfaturamentos sistemáticos, caixas-dois estratosféricos, mensalões despudorados, farras aéreas generalizadas, sentenças vendidas em feira livre e, agora, os atos secretos do Senado a favorecerem diretores de todos os naipes, mordomos, amantes e cozinheiros, sempre, claro, às expensas da Viúva.
A presunção de que os cabelos brancos indicariam comedimento e zelo pelos bens públicos parece significar o oposto: a franquia para o desmando. Até prova em contrário, e vai ser necessária muita prova, fica o gosto amargo de que boa parte dos guardiões das finanças e da maturidade legislativa, funções de nossos senadores, sofre de síndrome de Peter Pan associada a espasmos de Victor Lustig.
Mas não nos iludamos. O Senado Federal, como arremedo do Senatus romano, é a manchete da hora. Não tenhamos dúvida, porém, de que, neste exato instante, em algum lugar lá ou em outro poder, novas tramas estão se enredando e, de quebra, corrompendo nosso sonho de nação livre, justa e solidária.
Pode ser que, pelo nosso comodismo ou docilidade, estejamos à espera de novas vilanias sem, ao menos, fazermos coro às reclamações de Marco Túlio. Pode ser que o desencanto prenunciado por Rui Barbosa no início do século XX seja a nossa sina. Dizia ele: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
A honestidade, de fato, parece que se tornou a qualidade dos tolos e dos fracassados. Será? Tomara que não, insisto que não, mesmo que tenhamos de fazer tarefas de Hércules diante dos desafios de restauração republicana, sob pena dos Catilinas continuarem a se arvorar em Césares. É antes preferível uma vez na vida ser Hércules, com todos os riscos de eventuais tropeços, a perder de vez a dignidade e a vergonha.
Muito além da indignação e perda de paciência, meu caro Cícero, é preciso ação. Por isso, a guilhotina de Robespierre deve ser recuperada, não, obviamente, como arma fratricida e conspiratória ou lâmina afiada e sanguinária, mas como instrumento jurídico, pacífico e democrático de corte dos desatinos e de construção de uma vida digna e republicana.
Guilhotina que visa à degola do patrimonialismo de nossas práticas, dos privilégios de nossas castas, dos “fichas-sujas” de nossas representações, dando expressão à cultura do bem-comum, à responsabilidade política e à política como espaço da cidadania.
Guilhotina que se faz de educação continuada para uma sociedade fraterna e para a polis, de compromisso sério das instituições, de hombridade dos agentes públicos, de controle social de todas as instâncias e da igualdade de todos em todos os domínios com o devido respeito aos direitos fundamentais, sem farsas ou fetiches. A guilhotina, enfim, que se chama república.
Robespierre não será um justiceiro, dominado pelo ódio ou pela obsessão autoritária de poder, ainda que bem intencionado. Robespierre seremos todos na busca plural de nossa felicidade, individual e coletiva. De guilhotina em punho e com a república no espírito.
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