sexta-feira, 17 de julho de 2009

Toque de recolher para menores e a lógica de Simão Bacamarte

Parece que as autoridades públicas escolheram o caminho mais fácil para enfentar o problema das drogas e da criminalidade dos jovens com a adoção judicial do toque de recolher. Os aplausos dos pais tendem a elevar-se com a redução do índice de evasão escolar e de ocorrências policiais.
De acordo com a Folha de S. Paulo, o levantamento feito pela Vara de Infância e Juventude da cidade paulista de Fernandópolis, onde a medida está em vigor desde 2005, mostrou que o número de registros policiais envolvendo adolescentes diminuiu 23% de 2004 para 2008. Os furtos, por exemplo, passaram de 131 para 55.
Os juízes que as decretaram devem estar exultantes com esses primeiros números. Em suas portarias de decreto, em geral, eles se valeram do argumento de que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impõe um dever objetivo a todos, à família, à comunidade, à sociedade e, também, ao poder público, de proteção integral dos direitos fundamentais dos menores de 18 anos (especialmente - e isso é destaque em quase todas elas - seus direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária).
Esse dever há de ser cumprido por meio da adoção de medidas previstas na própria lei ou por outros meios adequados, com o intuito sempre de facultar aos jovens o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, "em condições de liberdade e de dignidade", sob pena de responsabilização dos que não os fizerem a tempo e hora.
De fato, há tanto previsão de um dever geral de proteção aos jovens (art. 98 a 101, ECA), quanto competência da Justiça da Infância e da Juventude para disciplinar a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em estádio, ginásio e campo desportivo, bailes, boates, casa que explore comercialmente diversões eletrônicas, bem como em estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão. Também poderá dispor sobre a participação de criança e adolescente em espetáculos públicos e certames de beleza. (art. 149, ECA).
A 3a Turma do Superior Tribunal de Justiça, embora não tenha examinado o mérito de um recurso ordinário em mandado de segurança contra decisão judicial, baseada exatamente no artigo 149 do ECA, deixou registrado que as "portarias impugnadas pela via do mandamus não encerra[va]m conteúdo teratológico" (RMS 853-MA). O CNJ negou liminar, em procedimento de controle administrativo, para suspender a decisão tomada pelo juiz de Nova Andradina (MS) que estabelecia restrições à participação de menores desacompanhados em ruas, festas, bailes e casas de jogos eletrônicos a partir das 21 horas.
O conselheiro Marcelo Nobre, em exame preliminar, entendeu que as determinações judiciais apenas disciplinaram, de acordo com o ECA, a permanência de crianças e adolescentes na rua depois de certos horários. O mais importante, a seu ver, era que o pedido de liminar não podia ser deferido por não ter a medida o potencial para causar prejuízos irreparáveis ao requerente do procedimento. Faltava, na linguagem jurídica, o requisito do periculum in mora. Muitos se têm valido dessas decisões para demonstrar a correção jurídica das portarias. Não é bem assim, todavia.
É preciso atenção ao que efetivamente permitem concluir tais pronunciamentos. A decisão monocrática do CNJ ainda depende de apreciação do Plenário. E, mesmo que ratificado o indeferimento da liminar, o estudo mais apurado do assunto será feito somente na chamada "decisão de mérito". É, no mínimo, ponderável que, por se tratar de controle da atividade judiciária (atividade-fim do Judiciário), embora, para alguns, tipicamente administrativa, o CNJ declare a falta de atribuição para revê-la.
Já o acórdão do STJ limitou-se ao exame de cabimento do recurso equivocadamente interposto. Se tivesse ido mais a fundo na apreciação da causa, o resultado provavelmente seria outro. Não podemos extrair conclusões relevantes dos dois julgados, portanto.
É certo que o § 1º, b, do art. 149, prevê que a autoridade judiciária deverá levar em conta para definição de medidas de proteção do menor as peculiaridades locais. Mas é óbvio que essas medidas devem ser aplicadas para casos específicos e não como se lei fosse a disciplinar com generalidade e abstração.
Aliás, o § 2º do mesmo artigo, atentando para a natureza da função judicial e de acordo com o artigo 93, IX, da Constituição, é elucidativo a respeito: "As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral". Deixamos para trás os tempos do Código de Menores que, de inspiração autoritária, conferia à autoridade judiciária poderes para expedir portarias sobre tudo ou quase tudo, de acordo com a sua conveniência ou arbítrio. A vez é da democracia e das soluções adequadamente fundamentadas.
A pretexto de salvaguardar os direitos dos jovens, os juízes estão a feri-los seriamente. Penso, principalmente, no artigo 3º, 4º, caput, 5º, 15, 16, I, e 18, do Estatuto. O desenvolvimento da sociabilidade, da convivência familiar e comunitária, e do amadurecimento responsável dos jovens, embora aparentemente seja o objetivo das medidas, acaba comprometido por elas.
Festas e encontros são vedados após, em geral, as 21 horas. Os folguedos de juventude, abortados. Sem contar a humilhação que podem passar os desavisados ou, próprios da idade, os renitentes. Delito? Um costumeiro lual ou a exibição pessoal entre grupos de iguais em alguma rua ou bar que foi além do horário.
Compromete-se a vida social e familiar, comprometem-se os direitos culturais. Segundo a reportagem da Folha, os moradores da cidade de Taperoá (PB) reclamaram que a proibição de menores de 12 anos andarem nas ruas após as 21 horas os impedia de participar de festas juninas com os filhos. O excesso é patente.
O Estado, que deveria criar um ambiente seguro de interação social dos jovens, prefere decretar um estado de sítio para menores e, assim, impedir todo e qualquer festejo ou o simples andar por andar. As avenidas iluminadas não mais admitem transeuntes impúberes ou quase. São escoadouros do silêncio e das vontades frustradas. Ou de adultos que querem ser ou fazem vezes de crianças mal-criadas.
Por seu lado, os pais se despiram do dever de educar seus filhos para vida, preferindo a vedação pela vedação. Confundem proteção ou imposição de limites com repressão e autoritarismo. Tanto melhor que não sejam eles a aplicar a proibição, mas o Estado.
Que espécie de geração virá desse ambiente? Será que defenderá consistentemente a liberdade e a democracia, se teve de conviver com a regra desmedida da negação do prazer e da comunicação? Que justiça se cultiva com essas iniciativas? A da prudência? A do equilíbrio? Que Estado é esse que, em vez de adotar políticas educacionais e, ao mesmo tempo, promover a integridade psicofísica e social de seus cidadãos jovens, prefere recolhê-los à custódia domiciliar?
Que poderes públicos eles são que, em vez de responsabilizarem aqueles que se aproveitam dos arroubos ou inseguranças da juventude, vendendo-lhes poções mágicas de felicidade, preferem punir a própria vítima? Que efetividade é esperada dessas medidas, se as causas dos problemas combatidos permanecem incólumes? Sim, pois quem será responsável por uma sociedade desagregada, perdulária e individualista, os jovens? Quem será responsável pela exclusão social e discriminação, os jovens? Quem será responsável pela corrupção nos costumes e na política, os jovens? Quem será responsável pela violência doméstica, os jovens?
Ora, ora, os jovens que, além de todos os desafios e desatinos desses tempos confusos, ainda têm que lidar com a restrição desproporcional de sua liberdade de ir e vir ou de ficar, como fossem cidadãos de segunda classe. A Liberdade sofreu restrinções que superaram em quilômetros o cumprimento do dever estatal de tutela dos interesses juvenis. Não se pode determinar a prisão para proteger a liberdade como se todos fossem propensos às drogras e aos crimes, como autores e vítimas ao mesmo tempo. A solução faz lembrar a terapia de Simão Bacamarte.
Machado de Assis o criou em "O Alienista" para fazer uma bela metáfora sobre a ciência e a política. Para quem não se lembra, Simão resolveu fundar um hospício no casarão Casa Verde para realizar seus estudos da psiquiatria.
Com o apoio da comunidade, começou a internar os moradores que diagnosticava como loucos. E para lá foram o vaidoso, a supersticiosa, o bajulador, a indecisa, o poeta, o boticário até trancafiar quatro quintos da população. Sua conclusão não poderia ser outra: todos são loucos. Todos menos um, o próprio alienista. A lógica tinha de ser invertida: soltem-se os loucos, prenda-se o são. E foi assim que acabou por se internar no hospício até a morte.
Nem sempre o mais fácil é o mais correto. Nem sempre o correto é fácil de realizar. Simão que o diga. E, por enquanto, muitos jovens do País também.
Imagem: capa do disco "The Fatalist And Friends" dos Robbers On High Street

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