segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A escravidão de nossos dias

A Genes on lit au devant des prisons & sur les fers des galériens ce mot Libertas. Cette application de la devise est belle & juste. En effet il n’y a que les malfaiteurs de tous états qui empêchent le Citoyen d’être libre. Dans un pays où tous ces gens-là seroient aux Galeres, on jouiroit de la plus parfaite liberté. (Jean-Jacques Rousseau. Du Contrat Social.)
O mundo lida com uma escravidão invisível. Tudo se passa como se o tráfico de escravos tivesse desaparecido do mapa-múndi, desde que a consciência moral veio a revelar que o ser humano não podia ser tratado como objeto, instrumento ou meio, senão como fim, sujeito, pessoa. Nada mais de escravo por natureza, por guerra ou sob qualquer forma, portanto, certo? Errado. Estima-se que entre 12 e 27 milhões de pessoas, principalmente mulheres e crianças, são mantidas em condição de escravo. O tráfico internacional chega a mobilizar mais de seiscentos mil seres humanos por ano. Os valores envolvidos são exponenciais. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o lucro obtido só no tráfico de pessoas ultrapassa a US$ 31,6 bilhões anuais. As diversas formas de escravidão hoje incluem a escravidão propriamente dita e a contratual (ou por dívida como no "sistema Chukri" na Índia e em Bangladesh. Embora ilegal naqueles países, a sua prática ainda é freqüente), o trabalho em prisão e em campos prisionais (trabalho penal), o sistema de escambo (truck system) em que, unilateralmente, a paga se dá por meio de mercadorias ou produtos, bem como os serviços dos conscritos (prestação de serviço militar obrigatório sem recebimento de remuneração alguma ou em baixíssimos valores). O tráfico de pessoas é, simultaneamente, redução das vítimas à condição de escravos, por meio da força ou de fraudes (falsas promessas de emprego e status), e meio de promover o instituto, mobilizando massas de gente em diversos cantos do globo. A ONU define, em seus documentos, o "trabalho forçado" e "tráfico de pessoas". O primeiro é previsto pela Convenção 29 da OIT como "todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de alguma punição e para o qual o dito indivíduo não se apresentou voluntariamente". Já o tráfico é identificado pelo artigo 3 do protocolo suplementar à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, de 6 de outubro de 2000, como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.” A UNICEF calcula que duzentas mil crianças da África, principalmente em Benin e no Togo, são vendidas como escravas a cada ano. E os destinos não são necessariamente transatlânticos. Muitas delas são levadas para trabalhar em serviços domésticos, nas lavouras e na indústria do sexo no Gabão e Nigéria. De acordo com o Departamento de Estado norte-americano, mais de noventa mil negros são capturados na África subsaariana, especialmente nas tribos animistas do sudeste do Sudão, por milícias árabes dos países do norte do continente, e vendidos entre US$ 15 e 100 por cabeça. A invasão se faz como nos mais terríveis e clichês filmes do gênero: com assalto às vilas e ateamento de fogo às casas, chacina dos homens e captura das mulheres e crianças. Os donos dos escravos os mantêm sob forte vigilância, quase sempre os submetendo a chantagens. Não raro, mutilam fisicamente seus "bens humanos" como se fosse uma espécie de ferro a identificar o proprietário. A comunidade internacional tem procurado enfrentar o drama. Além de Convenções regionais e no âmbito da ONU, diversas agências governamentais e não governamentais foram instituídas para denunciar e combater essa prática injuriante ao que se autoproclama civilizado. A Organização Internacional para Migração (IOM), sediada em Atenas, Bruxelas, Paris, Roma e Viena, tenta impedir o tráfico de seres humanos, assim como o Comitê contra a Escravidão Moderna (CCEM), que, como o nome indica, luta contra todas formas de escravidão moderna. A Associação sobre Estrada, é membro do Comitê para Coordenação das Ações Governamentais contra a Exploração Sexual de Mulheres e Crianças da União Européia. No plano interno, destacam-se, na Bélgica, o Pag-Asa e o Payoke, o Servizio Migranti Caritas, baseado em Turim, com ênfase ao combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho forçado, especialmente o sexual. No Brasil, há diversos registros de trabalho escravo e exploração sexual de mulheres e jovens. Estima-se que existam entre 25 e 50 mil pessoas vivendo em regime de escravidão no país. A grande maioria é formada por trabalhadores oriundos de Estados do Nordeste, notadamente da Bahia, do Piauí, Rio Grande do Norte e do Maranhão, que são aliciados pelos chamados "gatos" para trabalharem em grandes fazendas de gado, de soja, algodão e cana-de-açúcar no Norte, no Mato Grosso e mesmo no Sudeste. Os trabalhadores, removidos de suas localidades, acabam por contrair dívidas vultosas, impostas pelo patrão e pelos intermediários. Além de viverem em condições precárias e não receberem salários, retidos como forma de pagamento, são impedidos de deixar o lugar de trabalho. A situação de penúria associada ao baixo índice de formação dos afetados leva a um quadro sociológico peculiar em que a pessoa explorada ou reduzida à condição de escravo, como diz Souza Martins, sequer tem consciência de seu quadro, não detendo, por consequência, a capacidade de indignar-se. De acordo com os levantamentos feitos pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, entre 1995 a julho de 2006, 19.924 trabalhadores foram libertados no Brasil. Nesse período, foram realizadas 451 operações, com 1.567 fazendas fiscalizadas e mais de R$ 25 milhões pagos em indenizações. Quem acha que o fenômeno se restringe ao campo se engana. Na capital paulista, foram registrados casos em que estrangeiros, sobretudo bolivianos ilegais no país, trabalhavam em fábricas confecções em ambientes insalubres e clandestinos, sem outro direito trabalhista que não fosse o recebimento de minguados salários. Em relação ao tráfico de pessoas, o último estudo realizado sobre o tema data de 2002. Cuidou-se da Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual (Pestraf), que delineou 241 rotas de tráfico, sendo 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais, de crianças, adolescentes e mulheres brasileiras. Os dados reunidos pela pesquisa serviram como orientação inicial para os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instalada no Congresso Nacional entre 2003 e 2004, com o intuito de investigar a prática da exploração sexual comercial no país. O maior número de rotas foi encontrado no Norte e Nordeste, mas também são alarmantes os registros delas no Sudeste, no Centro-Oeste e no Sul. Catalogaram-se 86 inquéritos e 68 processos penais sobre o crime previsto no art. 231 do Código Penal (Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual). O problema exige o comprometimento do Estado e da sociedade com ações efetivas de combate a tais desatinos. Uma iniciativa do gênero foi adotada com o “Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo”, lançado em 11 de março de 2003, que reúne órgãos do Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público, além de entidades da sociedade civil e organismos internacionais. No plano legislativo, há projetos de lei em tramitação que visam tanto ao agravamento de penas ou criação de novos tipos penais, quanto previsão de sanções cíveis mais severas. Destacam-se, no âmbito criminal, os projetos que incluem como tipo precedente para a "lavagem de dinheiro" ou ocultação de bens, direitos e valores, o tráfico de pessoas (PL-4334/2004; PLS 117/2002; PLS 15/2006; PLS 15/2006); que definem o tráfico de pessoas e crianças para fins de prostituição, trabalhos forçados, trabalho escravo, remoção e comercialização de órgão humano como figuras penais (PL-2375/2003), bem como os que enquadram como crime hediondo a mediação para servir a lascívia de outrem, o favorecimento da prostituição, rufianismo e o tráfico de pessoas; altera o termo "tráfico de mulheres" para tráfico de pessoas, com o objetivo de incluir os crimes praticados contra menino e menina (PL-2338/2000 ). No campo cível, merecem nota, entre outras, as proposições que proíbem a concessão de crédito e a contração por licitação a pessoas físicas ou jurídicas que tenham incorrido em ato que configure a submissão de alguém à condição degradante de trabalho ou que importe grave restrição à sua liberdade (PL-3500/2004; PLS n. 207/2006); a que institui o Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo (PLS 25/2005) e a que inclui as propriedades onde se identifiquem faltas da espécie no programa de reforma agrária (PLS 352/1999). Quem dera essa história de escravos em tempos atuais fosse apenas roteiro de filme grotesco ou metáforas de mau gosto a refletir, por exemplo, a submissão de um ao amor condicional do outro. Não é, infelizmente.

Um comentário:

Balaio da Vivi disse...

Sim, o lugar de escravo é ruim em qualquer situação. Até mesmo "por amor". Gostei do emprego da expressão "indústria do sexo". Ajuda-nos a ver os vários lados do tbm horripilante turismo sexual.