O poder em Nietzsche admite, pelo menos, duas leituras. Uma tradicional (a do darwinismo social), outra heideggeriana ou construtiva. A primeira o identifica com a dominação da vontade alheia (princípio psicológico e humano) ou de todas as formas de existência (elemento evolutivo vital de Gaia Ciência, ou cosmológico - de todo universo físico no “eterno retorno”).
O poder seria, como princípio humano ou universal, o estímulo ou a energia propulsora do existir. Tão forte que levaria o indivíduo a colocar em risco a própria vida para obter mais poder. Logo, seria mais forte do que a vontade de (sobre)viver, defendida por Schopenhauer. A vontade de poder (Wille zur Macht) estaria por trás da piedade como da impiedade, do senhor e do servo, do ascético e espiritual como do vaidoso e materialista. Seria o impulso da vida individual e da vida coletiva:
"Mesmo num corpo em que os indivíduos se tratam como iguais [como numa aristocracia plena e ativa] (...) está presente a encarnação da vontade de poder, que haverá de crescer, de expandir-se, de atrair, de tornar-se predominante - não em função de ser moral ou imoral, mas porque é viver e porque a vida é simplesmente a vontade de poder." (Beyond Good and Evil. Trad. H. Simmem. Whitefish: Kessinger Pub., 200?, p. 117).
O impulso socializante seria, portanto, de domínio unilateral (o prazer é filho do poder - Léon Dumont) ou de ser dominado (o dominado acredita que domina o dominador) ou de condomínio, se houver equilíbrio de forças sociais: "Estas então conspirarão em conjunto pelo poder. E o processo [de expansão da vontade] continuará"(The Will to Power. Trad. W. Kaufmann; R. J. Hollingdale. London: Weidenfeld and Nicolson, 1968, 636).
O poder seria pai e herdeiro da violência, da força, da dominação. Para Nietzsche, não haveria uma justiça em si mesmo considerada assim como nenhuma injúria, exploração ou destruição poderia ser definida como intrinsecamente injusta, pela razão simples de que a própria vida atuaria, em suas funções básicas, recorrendo a tais "violências".
Mas essa observação não poderia induzir o pensamento de que tudo haveria de ser sempre assim. "Artificial e excepcionalmente", o processo poderia sofrer uma interrupção com vistas à criação de uma unidade de poder maior. É nesse ponto da discussão nietzscheana que surge uma "teoria do estado" como uma exceção ao curso da vida biológica:
"Uma ordem legal pensada como soberana e geral, não para ser o espaço de lutas entre complexos de poder, mas como instrumento de contra a luta mesma, segundo o cliché comunista de Dührig, onde toda vontade deve considerar toda outra vontade com igual, seria um princípio hostil à vida, um agente de dissolução e de destruição do homem, uma tentativa de assassinar o futuro do homem, um sinal de fraqueza, um secreto caminho para a insignificância". (On the Genealogy of Morality. Trad. Douglas Smith. Clarendon: Oxford University Press, 1996, p. 57).
Essa leitura que, curiosamente, baseia-se num evolucionismo alternativo ao de Darwin (do princípio de competição e sobrevevência adaptativa no âmbito celular de Wilhelm Roux; da perfeição de Karl Wilhelm von Nägeli, a defender que evolução se dá no sentido de obtenção da complexidade orgânica, e da insaciabilidade da vida de William Rolph, a exigir absorção do entorno e sua transformação evolutiva) tem servido de argumento a favor do darwinismo social e foi usado como justificativa da supremacia ariana pelos nazistas.
Um exemplo sempre lembrado é o de Alfred Baeumler, um dos maiores (senão o maior) ideólogo de Hitler, que, embora negasse encontrar uma teoria do estado nazi expressamente em Nietzsche, localizava em seu texto todos os fundamentos (até premonitórios, ele dizia) da superioridade alemã. Para a defesa dessa superioridade, a Alemanha não haveria de valer-se nem da concepção hegeliana de Estado como entidade moral, nem da visão tímida e católica de Bismarck:
"Diante de seus [de Nietzsche] olhos, impunha-se a tarefa de nossa raça: a de ser líder da Europa". A razão lhe parecia simples: "O que seria a Europa sem a Alemanha [especialmente a do Norte]? Uma colônia romana. [Logo], os alemães tinham que escolher entre existir como um poder antirromano da Europa ou não existir". O destino seria a grandeza da nação "sob o espírito de Nietzsche e da Grande Guerra." (Nietzsche, der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931, p. 180, 181, 183).
Segundo Heidegger, entretanto, Nietzche não tinha em mente o estabelecimento de um poder político ou a força bruta de opressão de homens sobre outros homens, ao falar de "Wille zur Macht". Não se deveria confundir, portanto, poder com a disposição do corpo ou da mente alheia. Sua definição estaria longe do desejo de dominação ou da prevalência do mais forte. Seria antes a qualidade de domínio da própria paixão e da vontade pelo "espírito livre", mesmo contra os costumes, ou, em outras palavras, o autocontrole que possibilitaria a criação da arte e da filosofia, campos da férteis da felicidade.
Há a favor da interpretação de Heidegger algumas passagens interessantes de Nietzsche. Em Human, All Too Human (Trad. M. Faber. University of Nebraska Press, 1984), por exemplo, ele critica o darwinismo social e o valor da lei do mais forte:
"Todo progresso do todo deve ser precedido por uma enfraquecimento de partes. As formas mais fortes retêm o tipo, o mais fraco ajuda-os a evoluir [É precisamente a natureza mais fraca, como a mais delicada e livre, que faz possível o progresso]. Algo similar também ocorre com o indivíduo. Raramente se verifica uma degeneração, uma truncagem ou mesmo um vício ou uma perda moral ou física sem importar uma vantagem em algum lugar (...). O cego verá mais profundamente seu interior e certamente ouvirá melhor. Portanto, a famosa teoria de sobrevivência do mais adaptado não poder ser defendida como único ponto-de-vista que explique o fortalecimento de um homem ou de uma raça"(p. 138-139).
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