Heaven is so far of the Mind
That were the Mind dissolved —
The Site—of it—by Architect
Could not again be proved.
(Emily Dickinson)
Certamente você já ouviu falar em “bioética”, mas sabe exatamente do que se trata? Se a resposta for negativa, não se preocupe. Nem mesmo os estudiosos no assunto se entendem sobre o sentido mais exato do termo. E não é para menos. A palavra é nova e o seu significado, mais que novo, complicado.
O neologismo “bioética” surgiu com o livro do professor norte-americano Potter van Rensselaer “Bioethics: Bridge to the Future [Bioética: Ponte para o Futuro], publicado em 1971. O termo, desde então, passou a admitir uma concepção ou perspectiva ampla e outra estrita, sem contar as pequenas variações que cada uma delas apresenta. Pois bem, em sentido estrito ou, para alguns, na perspectiva de microética, a bioética cuida das regras morais que devem disciplinar a conduta médica, a relação médico-paciente e as inovações tecnológicas aplicadas à saúde humana.
Alguns autores se referem a ela como as pautas normativas da “biomedicina”, expressão quase tautológica, não fosse pela ênfase que dá aos vínculos entre biologia e medicina, principalmente como instrumentos técnicos e científicos, sociais e ecológicos, corporais e psíquicos (o homem não é apenas um corpo-objeto do conhecer, mas também um complexo de sentimentos), de promoção da saúde humana.
Em sentido amplo, o neologismo é visto como o padrão moral de todas as ações que possam ajudar ou prejudicar os organismos capazes de desenvolver os sentimentos de medo e dor. Cuida, portanto, dos questionamentos éticos e morais acerca das múltiplas irradiações ecológicas da vida, passando-se a ser chamada, pela extensão que assume, de “macrobioética.” Ou, simplesmente, “ética da vida”.
Que concepção devemos seguir? A resposta obriga à pergunta: qual a visão-de-mundo temos, centrada no homem (antropocêntrica) ou focada no ambiente (biocêntrica ou holística)? A indagação pode exigir que se esclareça outra dúvida: que filosofia moral pressupomos (e defendemos), racionalista, utilitarista, humanista, discursivista... Qual?
Na verdade, as questões apenas revelam que a bioética admite tanto uma dimensão descritiva, destinada a esclarecer os valores que se encontram presentes nas opções éticas a serem feitas; quanto outra, prescritiva, orientada mais diretamente para a conduta dos cientistas. Dimensões que se implicam e se esclarecem mutuamente.
Talvez fique mais fácil se começarmos a pensar por que queremos e o que queremos com a bioética. Por quê? Ora, em razão das nítidas deficiências dos modelos de progresso seguidos pela humanidade, principalmente depois da Revolução Industrial: exclusivista e excludente, elitista e individualista; estetizante e ambientalmente perverso, consumista e perdulário.
Todos esses modelos (econômicos, sociais) partem de uma equivalência indevida entre o cientificamente possível e o humana e ambientalmente desejável. O corpo e o ego são as instâncias de domínio, da biopolítica à lembrança de Foucault. Aliás, a política é a esfera de decisões vinculantes apenas do ponto de vista formal, pois o centro real de decisão do que queremos hoje e desejaremos amanhã está localizado nos departamentos de marketing e finanças das grandes corporações.
As mídias apenas a veiculam, enquanto os arranjos e pressões de bastidores completam a rede de domínio. O corpo de indivíduo, nesse contexto, é tomado como uma teia neurológica de causa-e-efeito e estimulado para assim permanecer, sem alma ou transcendência, como Baxter em “Sábado”, livro do britânico noir Ian. McEwan, um corpo-reflexo do determinismo genético, irresponsável do ponto de vista das premissas antropológicas do direito (a consciência e autodeterminação) e matável, Agamben está certo, sem culpa ou remorso do assassino.
Como alerta Michel Onfray, o corpo é tudo que resta depois de serem desnudadas as ideologias (cristãs, islâmicas, marxistas, estruturalistas e outras metanarrativas) e todos os discursos de poder, inclusive os da bioética: “ce qui ne se morcelle pas ou plus quand on a tout morcelé”. A revolução informática e financeira dos últimos tempos apenas agravou esse quadro com a supremacia absoluta da estética do ter, virtualmente ampliado com as bolsas eletrônicas e os e-negócios, sobre a estética do ser, guindado a um corpo virtual e simulado em jogos, jogos não, games, tão descartáveis quanto o corpo vivo e ao vivo.
Não há, no real inventado, um real a ser valorizado como não há mata, não há rios, não há mar, não há política, não há valores a serem preservados, não há responsabilidade a ser efetivamente imputada, pois tudo é propaganda e consumo sobre e para aquele indivíduo biológico ao mesmo tempo cultuado e destruído. Não se quer com a bioética, por certo, o retorno da Idade da Pedra, mas a adoção de práticas que corrijam os desvios do progresso alcançado ao custo da perda de sentido de ser e do ser alguém com nome e, sem oligarquia, sobrenome. Um sujeito situado e mais complexo do que o somatório de reações fisicoquímicas geneticamente determinadas. Como fazer?
Pensemos, em primeiro plano, no respeito à alteridade (a autonomia moral, política e jurídica das pessoas) e à vida digna, promovida especialmente pela busca existencial da beneficência (com ações sempre voltadas para melhoria das condições pessoais e sociológicas da vida), da não maleficência (primum non nocere ou mandado de proibição a condutas danosas ou prejudiciais) e da democratização dos saberes e conhecimentos, dos riscos, custos, benefícios e das decisões correlatas (justiça eqüitativa e (re)distributiva associada ao tecnoprogressismo).
Imaginemos, ainda, intervenções que respeitem os limites do ambiente, objetivando sempre o desenvolvimento sustentado e sustentável. Estamos prontos a oferecer a concepção de bioética como visão interdisciplinar acerca do desenvolvimento da biomedicina e das tecnociências, como as entende Gilbert Hottois, de modo a compreendê-las, as descobertas científicas e as invenções técnicas, no mesmo contexto de ocorrências, efetivas ou potenciais, de benefícios e danos, das conseqüências culturais e intersubjetivas delas advindas (tema do chamado tecnocriticismo), de modo a preveni-las ou torná-las, individual, ambiental e socialmente, justas. Quer exemplos?
Fiquemos com as novidades no horizonte: as manipulações genéticas nos transgênicos e na clonagem; as técnicas de reprodução humana; os experimentos científicos nos variados campos e por diversos meios, as cobaias incluídas; a doação direta ou disfarçada de órgãos, a transexualidade e a eutanásia. Podem todos os procedimentos de pesquisa e intervenção médicas e científicas ser realizados ou até onde podem seguir? Eis alguns dos dilemas da bioética.
Um comentário:
A bioética me arrepia, é assustadora. Aplicada a medicina pode fazer coisas maravilhosas pelo ser humano!Se não for controlada pela lei de forma draconiana uma única intervenção desonesta pode gerar aberrações inenarráveis, apavorantes. Me arrepio de pensar nisso!
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