terça-feira, 11 de agosto de 2009

O mundo da bioética

Heaven is so far of the Mind That were the Mind dissolved
The Site—of it—by Architect Could not again be proved. (Emily Dickinson)
Certamente você já ouviu falar em “bioética”, mas sabe exatamente do que se trata? Se a resposta for negativa, não se preocupe. Nem mesmo os estudiosos no assunto se entendem sobre o sentido mais exato do termo. E não é para menos. A palavra é nova e o seu significado, mais que novo, complicado.
O neologismo “bioética” surgiu com o livro do professor norte-americano Potter van RensselaerBioethics: Bridge to the Future [Bioética: Ponte para o Futuro], publicado em 1971. O termo, desde então, passou a admitir uma concepção ou perspectiva ampla e outra estrita, sem contar as pequenas variações que cada uma delas apresenta. Pois bem, em sentido estrito ou, para alguns, na perspectiva de microética, a bioética cuida das regras morais que devem disciplinar a conduta médica, a relação médico-paciente e as inovações tecnológicas aplicadas à saúde humana.
Alguns autores se referem a ela como as pautas normativas da “biomedicina”, expressão quase tautológica, não fosse pela ênfase que dá aos vínculos entre biologia e medicina, principalmente como instrumentos técnicos e científicos, sociais e ecológicos, corporais e psíquicos (o homem não é apenas um corpo-objeto do conhecer, mas também um complexo de sentimentos), de promoção da saúde humana.
Em sentido amplo, o neologismo é visto como o padrão moral de todas as ações que possam ajudar ou prejudicar os organismos capazes de desenvolver os sentimentos de medo e dor. Cuida, portanto, dos questionamentos éticos e morais acerca das múltiplas irradiações ecológicas da vida, passando-se a ser chamada, pela extensão que assume, de “macrobioética.” Ou, simplesmente, “ética da vida”.
Que concepção devemos seguir? A resposta obriga à pergunta: qual a visão-de-mundo temos, centrada no homem (antropocêntrica) ou focada no ambiente (biocêntrica ou holística)? A indagação pode exigir que se esclareça outra dúvida: que filosofia moral pressupomos (e defendemos), racionalista, utilitarista, humanista, discursivista... Qual?
Na verdade, as questões apenas revelam que a bioética admite tanto uma dimensão descritiva, destinada a esclarecer os valores que se encontram presentes nas opções éticas a serem feitas; quanto outra, prescritiva, orientada mais diretamente para a conduta dos cientistas. Dimensões que se implicam e se esclarecem mutuamente.
Talvez fique mais fácil se começarmos a pensar por que queremos e o que queremos com a bioética. Por quê? Ora, em razão das nítidas deficiências dos modelos de progresso seguidos pela humanidade, principalmente depois da Revolução Industrial: exclusivista e excludente, elitista e individualista; estetizante e ambientalmente perverso, consumista e perdulário.
Todos esses modelos (econômicos, sociais) partem de uma equivalência indevida entre o cientificamente possível e o humana e ambientalmente desejável. O corpo e o ego são as instâncias de domínio, da biopolítica à lembrança de Foucault. Aliás, a política é a esfera de decisões vinculantes apenas do ponto de vista formal, pois o centro real de decisão do que queremos hoje e desejaremos amanhã está localizado nos departamentos de marketing e finanças das grandes corporações.
As mídias apenas a veiculam, enquanto os arranjos e pressões de bastidores completam a rede de domínio. O corpo de indivíduo, nesse contexto, é tomado como uma teia neurológica de causa-e-efeito e estimulado para assim permanecer, sem alma ou transcendência, como Baxter em “Sábado”, livro do britânico noir Ian. McEwan, um corpo-reflexo do determinismo genético, irresponsável do ponto de vista das premissas antropológicas do direito (a consciência e autodeterminação) e matável, Agamben está certo, sem culpa ou remorso do assassino.
Como alerta Michel Onfray, o corpo é tudo que resta depois de serem desnudadas as ideologias (cristãs, islâmicas, marxistas, estruturalistas e outras metanarrativas) e todos os discursos de poder, inclusive os da bioética: “ce qui ne se morcelle pas ou plus quand on a tout morcelé”. A revolução informática e financeira dos últimos tempos apenas agravou esse quadro com a supremacia absoluta da estética do ter, virtualmente ampliado com as bolsas eletrônicas e os e-negócios, sobre a estética do ser, guindado a um corpo virtual e simulado em jogos, jogos não, games, tão descartáveis quanto o corpo vivo e ao vivo.
Não há, no real inventado, um real a ser valorizado como não há mata, não há rios, não há mar, não há política, não há valores a serem preservados, não há responsabilidade a ser efetivamente imputada, pois tudo é propaganda e consumo sobre e para aquele indivíduo biológico ao mesmo tempo cultuado e destruído. Não se quer com a bioética, por certo, o retorno da Idade da Pedra, mas a adoção de práticas que corrijam os desvios do progresso alcançado ao custo da perda de sentido de ser e do ser alguém com nome e, sem oligarquia, sobrenome. Um sujeito situado e mais complexo do que o somatório de reações fisicoquímicas geneticamente determinadas. Como fazer?
Pensemos, em primeiro plano, no respeito à alteridade (a autonomia moral, política e jurídica das pessoas) e à vida digna, promovida especialmente pela busca existencial da beneficência (com ações sempre voltadas para melhoria das condições pessoais e sociológicas da vida), da não maleficência (primum non nocere ou mandado de proibição a condutas danosas ou prejudiciais) e da democratização dos saberes e conhecimentos, dos riscos, custos, benefícios e das decisões correlatas (justiça eqüitativa e (re)distributiva associada ao tecnoprogressismo).
Imaginemos, ainda, intervenções que respeitem os limites do ambiente, objetivando sempre o desenvolvimento sustentado e sustentável. Estamos prontos a oferecer a concepção de bioética como visão interdisciplinar acerca do desenvolvimento da biomedicina e das tecnociências, como as entende Gilbert Hottois, de modo a compreendê-las, as descobertas científicas e as invenções técnicas, no mesmo contexto de ocorrências, efetivas ou potenciais, de benefícios e danos, das conseqüências culturais e intersubjetivas delas advindas (tema do chamado tecnocriticismo), de modo a preveni-las ou torná-las, individual, ambiental e socialmente, justas. Quer exemplos?
Fiquemos com as novidades no horizonte: as manipulações genéticas nos transgênicos e na clonagem; as técnicas de reprodução humana; os experimentos científicos nos variados campos e por diversos meios, as cobaias incluídas; a doação direta ou disfarçada de órgãos, a transexualidade e a eutanásia. Podem todos os procedimentos de pesquisa e intervenção médicas e científicas ser realizados ou até onde podem seguir? Eis alguns dos dilemas da bioética.

Um comentário:

Anônimo disse...

A bioética me arrepia, é assustadora. Aplicada a medicina pode fazer coisas maravilhosas pelo ser humano!Se não for controlada pela lei de forma draconiana uma única intervenção desonesta pode gerar aberrações inenarráveis, apavorantes. Me arrepio de pensar nisso!