segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Ártico Inverso

Para recontar a quase perda de um amor líquido. Não há verdadeiramente perda, se o corpo não é encontrado. Não há perda se a alma permanece em sua invisibilidade comovente. Tomem como uma psicografia delirante. E como uma homenagem aos amores partidos, jamais perdidos, pelo AF447:
Oh ! cette double mer du temps et de l´espace Où le navire humain toujours passe et repasse, Je voulus la sonder, je voulus en toucher Le sable, y regarder, y fouiller, y chercher, Pour vous en rapporter quelque richesse étrange, Et dire si son lit est de roche ou de fange. Mon esprit plongea donc sous ce flot inconnu, Au profond de l´abîme il nagea seul et nu, Toujours de l´ineffable allant à l´invisible... Soudain il s´en revint avec un cri terrible, Ébloui, haletant, stupide, épouvanté, Car il avait au fond trouvé l´éternité
.
(Victor Hugo. La pente de la rêverie).
Se pudesse agora dizer tudo que sinto e senti, tudo inverso do que disse, quando disse, da última vez, que não me importava mais se amava ou debandava. Se pudesse ter afastado a embriaguez da mágoa tola, se pudesse desfazer a certeza do esbulho com que te assaquei como se fosses posses minhas, terra, coisa, objeto, eu te diria.

Se pudesse ter enxergado como enxergo neste instante a superficialidade do que geralmente prezamos por orgulho, machucando quem não deveria, nem quem jamais desejaríamos verdadeiramente machucar, fazendo-o apenas por uma espécie de prazer mórbido e sádico, se pudesse, sim, eu te diria.

Se pudesse Deus existir bastasse que só para iluminar a mente apaixonada, de modo que valorizasse o ser amado sem indiferença ou desdém, amor de quem, sem saber, daria a própria vida para viver sem qualquer volta, eu diria.

Amor destilado e puro, amor que se derrama em cartas, imaginárias ou eletrônicas; que se expressa no abraço lento ou no regaço do mero olhar. Amor desarmado, amor que é o oposto de, em todos, igual pavor. Amor simplesmente, amor, se é que ainda posso te chamar assim. Ah se diria.

Se não vivesse mudo o dia inteiro em todas as horas e os dias de nossos diários amorosos ou quase, como se o amor prescindisse da palavra falada, amor, da palavra amada, amor. Se não tivesse partido mudo, amor, não doeria tanto essa partida, este instante; se pudesse mexer nesse duplo mar de tempo e espaço, feito Cronos ou Saturno, Hugo ou Baudelaire, sim, diria.

Se outro vôo fosse, não – e por quê?– o AF447, a qualquer hora ou minuto a menos ou a mais (como me entristece); ou, melhor, se houvesse, inverso, compartido delongadamente os meus lábios com os teus sempre tão ofertados em carmim, nem tempo sobraria, mas, para mim, mesmo assim, diria. Se não tivesse querido voar para expor no d’Orsay como se o céu fosse mesmo a ilusão da arte de minha mediocridade humana e viril, poderia estar contigo agora e te dizer. Mas.

Tão pueril este artista que assiste à verdadeira arte sem nada perceber, sem aproveitar a estética profunda da companhia que se deixa a ficar no movimento simples das folhas a se seguirem dia sim outro também. Nem a nobreza de envelhecer em teu envelhecimento que no meu envelhecimento envelhecia, dava valor ou sentido, mas agora eu te diria.

Quem eu era, se não esse mesmo querosene que incendeia a boléia aérea e que põe todos em pânico? Todos menos eu, que, sem medo, apenas desgosto, choro essas lágrimas indistinguíveis como se sentir, sentir e sentir, no mais fundo do fundo do coração já avariado e nesse instantâneo de transição, pudesse me conectar a ti, como forma nova de garrafa ao mar, para deixar-te dito no escrito invisível da imensidão que te amo, te amo como sempre te amei e, no aguardo de teu fim, que seja leve sem esse fogo inverso do gelo do norte e esses gritos segundais, te amarei.

Certeza não tenho que também me amarás, mas como o amor, agora sei, é incondicional, me resta acreditar que jamais duvidarás que te disse o que digo que penso o que penso que sinto o que sinto agora. As águas deste oceano com as quais começo a me confundir te banharão amanhã, bem sei. E saberás que tudo não foi em vão. Certeza não tenho, ah se tivesse ou pudesse. De qualquer forma, eu te digo, adeus não, até breve, meu amor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ora, do vermelho emocionante ao azul tranquilo, deixo os meus pensamentos para quando a sua poesia chegar ao cinza, conformada, distante, arquivada no espaço construído pelo tempo.

Te acompanho!