terça-feira, 8 de setembro de 2009

A prostituição deve ser regulamentada?

"Temos raparigas para o prazer, amantes para o refrigério diário dos nossos corpos, mas esposas para nos darem filhos legítimos e olharem pela casa." (Apolodoro de Atenas)
A prostituição já foi motivo de riqueza e, de certo modo, de poder de algumas mulheres na Antiguidade. O Código de Hamurabi previa a possibilidade de herança por prostitutas. Na Grécia, muitas delas eram independentes e, principalmente as “heretas”, gozavam de respeito público por sua fortuna, educação e influência política. Em geral, tinham de se vestir de modo a identificar a sua atividade e pagavam tributos ao Estado. A prostituição masculina e juvenil era também corrente entre eles. Sólon teria criado o primeiro bordel em Atenas. Em Chipre e Corinto, havia templos de prostituição religiosa, que envolvia ritos sagrados de adorações ao sexo e favores sexuais, mediados por sacerdotisas ou por elas também praticados, como, em certos períodos, aconteceu na Mesopotâmia e no Egito.
Esse quadro se repetiu, inicialmente, em Roma. O direito pouco a pouco veio a regular a prostituição, impondo a sua prática apenas à noite e em lugares afastados da cidade, chamados de lupanários. Com o surgimento e apogeu do Império, as prostitutas passaram a ser, sobretudo, “despojo de guerras”. Surgiram, assim, as escravas sexuais. Passado algum tempo, escravas não eram apenas filhas dos conflitos armados, mas também aquelas que eram “abandonadas” por seus pais e criadas pelos seus senhores, as compradas a estrangeiros e até as nacionais que fossem punidas pela prática de crimes. Na Idade Média, seu estatuto oscilou entre a repreensão (e, às vezes, repressão) pública e a tolerância privada.
A defesa dessa dualidade era decorrência da necessidade de coexistência da proteção da moral pública e dos dogmas religiosos com a perpetuação das uniões inspiradas no amor cortês (casamentos arranjados em boa linguagem). As pulsões sexuais dos homens deveriam encontrar um escoadouro adequado e longe das donzelas de boa reputação e da própria esposa, para o desassossego desta e para controle do tamanho da prole oficial e do patrimônio da família, consequentemente. O que não mudou com a Reforma Protestante, não fosse pela retórica mais contundente e explícita contra ela. Tanto que Emma Goldman, contrária à sua prática, chegou a escrever que “a prostituição, embora perseguida, presa e acorrentada, é, não obstante, o triunfo maior de Puritanismo”.
A clandestinidade era, por conseguinte, o destino e a garantia das prostitutas. Mas a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis fez com que fosse adotado um sistema de regulação estatal nos países europeus, que exigia o registro das prostitutas e a sua submissão a exames médicos periódicos com a internação compulsória no caso de diagnóstico de doença venérea.
A Revolução Industrial ampliou o mercado do sexo. Foi nesse ambiente que Marx e Engels as viram como emblemas da coisificação capitalista da mão-de-obra assalariada. Com as transformações havidas no curso do século XX, passou-se a reivindicar um regime jurídico especial, ora motivado pelas críticas de algumas feministas que viam na prática um processo de “vitimização” (objetuação) da mulher, portanto, a apoiar o abolicionismo da prática, inclusive com a adoção da política de repressão ao consumo; ora como proposta de outras feministas de regulamentação das “trabalhadoras do sexo”.
As análises etiológicas da prostituição se tornaram cada vez mais profundas e diversificadas a partir da segunda metada do século passado. Por esse mesmo período, começaram a surgir abordagens menos preocupadas com a prostituta (suas razões, seu estatuto) e mais direcionadas para a definição de perfis e motivações da clientela do sexo profissional, geralmente, associados com os fenômenos de fragmentação das personalidades pós-modernas, dominada pela lógica do entretenimento e da experimentação de novas formas de lidar com a sexualidade (sem comprometer-se emocional ou socialmente) e pela orientação para o consumo (mercantilização do afeto), ligada ainda à confusão entre vida privada e vida pública. Tais estudos podem amparar tanto uma quanto outra perspectiva feminista.
A regulamentação profissional da prostituição é, por muitos, apontada como a alternativa jurídica, moral e socialmente mais aceitável. Advoga-se que a melhor forma de proteger a mulher que se dedica ao comércio do sexo é por meio da criação de um estatuto geral ou específico que lhe confira direitos trabalhistas e previdenciários. A sua invisibilidade jurídica, além de ser fruto de um preconceito, a reduz a uma condição humana inferior, o que é moralmente inaceitável. Muito mais do que a crítica ao ato de prostituir-se, definido, por alguns, como forma da escravidão feminina. Além do mais, a regularização de seu status reduziria os índices de violência perpetrados contra ela por agentes públicos e privados, inclusive o tráfico de mulheres.
Os pressupostos da regulamentação são objetos de crítica, todavia. Um evento realizado em 2003, no âmbito da Comissão das Nações Unidas sobre o Status da Mulher, CSW em inglês, deu oportunidade para que Melissa Farley, diretora de Pesquisa sobre Prostituição e Educação, um projeto desenvolvido pelo Centro de Mulheres de São Francisco, e Sheila Jeffreys, professora associada da Universidade de Melbourne e diretora da Coalisão contra o Tráfico de Mulheres na Austrália, procurassem demostrar que a prostituição está intimamente ligada a formas de opressão e violência contra a mulher.

De acordo com Melissa, uma pesquisa realizada com 854 pessoas envolvidas com prostituição (782 mulheres adultas e adolescentes, 44 transexuais e 28 homens) na África do Sul, na Alemanha, no Canadá, na Colômbia, nos Estados Unidos, no México, na Tailândia, na Turquia e em Zâmbia, mostrou um quadro desalentador:

  • 89% gostariam de sair do ramo, mas não possuiriam outro meio de sobrevivência;
  • entre 65% e 95% tinham sido violentadas sexualmente quando eram crianças;
  • entre 70% e 95% eram fisicamente agredidas;
  • entre 60% e 75% eram estupradas;
  • 88% passaram por algum tipo de agressão verbal ou constrangimento social;
  • 68% apresentavam sintomas de estresse pós-traumático em graus semelhantes aos de veteranos de guerra e torturados.

Sheila, por sua vez, afirmou que a legalização da prática, em alguns Estados australianos, não resolveu os problemas da violência e da criminalidade, chegando até a crescer em alguns casos. A ampliação irregular da prostituição continuou a existir, assim como os abusos contra as mulheres que faziam ponto nas ruas.

O tráfico de mulheres aumentou com a criação de novos prostíbulos. Algo ainda mais perverso: a prostituição de crianças em Vitória, um dos Estados que legalizaram a prostituição, também cresceu, inclusive se comparada a outros Estados do país. Ex-cafetões e criminosos passaram a compor uma nova e respeitada classe econômica: a dos “homens de negócio do sexo” (sex businessmen). Por outro lado, o Estado ampliou suas receitas por meio da tributação da prática, das taxas de licença de funcionamento de bordéis e “night clubs”, além do incremento do turismo sexual.

As conclusões de Sheila foram ratificadas pelos estudos mais recentes de Melissa. Em alguns Estados norte-americanos, como nos condados rurais de Nevada e, em parte, em Rhode Island, as “night clubs” são legalizadas, o que não coibiu o tráfico de mulheres, a violência e abusos cometidos contra elas, incluindo o estupro (os índices de estupro em Las Vegas, Nevada, por exemplo, são três vezes o que apresenta a cidade de Nova Iorque), sua infecção pelo vírus HIV nem os seus relatos de continuarem na atividade por imposição de cafetões e proprietários das casas.

O pior de tudo é que a legalização promoveria uma espécie de “cultura da prostituição” que passaria a ser vista como algo natural ou um fato como outro qualquer da vida. A solução que aviltra seria a adotada pelos suecos com a incriminação dos clientes, escorando-se no fato de que a medida reduziu drastricamente, naquele país, não apenas a prostituição, mas os crimes com ela relacionados.

Essas pesquisas têm sido acusadas de contágio do radicalismo feminista, repercutindo na isenção para realizá-las adequadamente. Weitzer, por exemplo, aponta nos trabalhos de Melissa falta de transparência sobre os métodos empregados nas entrevistas, desde a seleção das pessoas, passando pelos tipos de perguntas formuladas, até a consolidação dos dados. Tudo a comprometer as conclusões que faz.

O exemplo sueco, visto por ela como ideal, também é questionado. O ministro da Justiça da Noruega encomendou a um grupo de trabalho um estudo sobre a efetividade da política adotada naquele país e os resultados não foram os propagados nem oficialmente nem por simpatizantes como Melissa. De acordo com o grupo, o governo sueco não conseguiu demonstrar que a prostituição e o tráfico de mulheres de fato diminuiram no país.

Sheila padeceria do mesmo problema. A sua visão sexista sobre as relações humanas a impediria de enxergar com mais exatidão a realidade. A radicalização de seu pensamento sobre o domínio machista e estetizante sobre a mulher, incluindo a tese de mutilação transexual como um prolongamento da indústria masculina de beleza que ofertaria soluções cosméticas para problemas profundos da sexualidade humana, levou-a, segundo Julie Bindel, ao paroxismo em seu recente livro “The Industrial Vagina: The Political Economy of the Global Sex Trade” [A Vagina Industrial: A Economia Política do Comércio Global do Sexo].

A principal tese, ou a mais polêmica do livro, faz lembrar Bertrand Russel, quando dizia que o casamento seria para mulheres o modo mais comum de sustento. Entretanto, “o volume de sexo indesejado suportado pelas mulheres seria provavelmente maior no casamento do que na prostituição”. Pois bem, para Sheila o casamento heterossexual não passaria de uma forma de prostituição, porque legitimaria o direito dos homens ao uso sexual do corpo da mulher (p. 178).

Entre tabus e preconceitos, a prostituição continua a dividir a humanidade. O grave no caso brasileiro, onde não se pune a prática, mas rarefeitamente quem a alicia ou promove, é que sua invisibilidade também se destaca nos meios acadêmicos, principalmente no âmbito do Direito. Raros são os trabalhos e debates a respeito, dificultando a definição clara e efetiva de políticas públicas em favor da mulher. Que só perde com essa clandestinidade.

Nenhum comentário: